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Realismo fantástico
Trago notícia de um mundo sem rédeas, no qual, todos os caminhos levam à imaterialidade. Nele, a objetividade da lógica serve apenas para dimensionar o impossível. O que hoje vou lhe contar, a princípio, deixou-me fascinado, por não ter vivido nada parecido antes.
Não tenho nada a reclamar do que sonho. O sono, quando chega, geralmente carregado pelo cansaço, é sempre bem-vindo. Às vezes, vem no de repente e a imagem congela: óculos pendurado no rosto, livro aberto na mão, luz acesa ao lado. Nunca sei quanto tempo permaneço estático, desplugado da leitura.
Vale explicar que, para mim, a leitura é desintoxicante. Dependendo do cansaço, as opções mudam. Confesso que, em se tratando do ato de ler, exerço a automedicação: nas horas de saudade do Nordeste, leio João Cabral, Guimarães, Graciliano, Rachel. Em dias confusos, cheio de dúvidas, pego Fernando Pessoa e ficou passeando pelos heterônimos. E aí, encontro muito “pano pra manga”. Mas, quando quero brincar com palavras, leio Leminski, Manuel de Barros, Quintana, os irmãos Campos, Augusto dos Anjos…
Como não brinco com fogo, leio Clarice Lispector e aceito o desafio drummondiano de fazer a “dificílima dangerosíssima viagem/ de si a si mesmo”.
Mas o sonho que quero lhe contar aconteceu em um sábado para domingo (08/02), eu estava bem tranquilo, relendo poemas de “Viagem”, “Vaga Música” de Cecília Meireles, após cumprir o ritual da espera do sono. E aqui vale mencionar uma estrofe do poema “Embalo” da poeta citada: “Adormeço em ti minha vida,/ imóvel, na noite, e sem voz./ A lua, em meu peito perdida,/ vê que tudo em mim somos nós”.
Fechei o livro. Fiquei no gostoso do pensamento desconectado do real. Ninguém é de ferro. Há momentos que precisamos nutrir a alma com olhos fechados e a mente aberta para o Eterno. E assim encher de esperança o amanhã…
Pois é! Adormeci…
No sonho, fui ao cinema em Teresina. Só que não se tratava de uma sala de exibição comum, com uma grande tela branca na frente e poltronas para a plateia. Era uma casa enorme, cheia de cômodos, com pé-direito bem alto.
O filme era exibido nas paredes dos cômodos. Não havia cadeira alguma. O público andava por quartos e salas. Não era o filme que passava. Quem passava era o público. Cada pessoa seguia a narrativa em seu próprio tempo. A entrada era por uma sala grande com várias portas com passagem para vários quartos que se interligavam.
Cada pessoa tinha a opção de entrar por uma porta e sair por outra. E assim, cada pessoa seguia por uma linha narrativa. E eu, no meio de tanta gente, além de olhar para o que estava sendo exibido, em preto e branco, nas paredes, procurava olhar a reação de quem estava em volta.
Passei a tentar adivinhar o que se passava em cada quarto pela reação das pessoas que saiam: “acho que aqui é algo engraçado, as pessoas estão rindo”. “Aqui é algo triste, tem gente chorando”. “A aqui tem algo de terror, tem gente assustada, com medo”…
Como os cômodos eram escuros não se via, com clareza, o rosto das pessoas. Mas era possível perceber as reações delas, principalmente das mulheres, pois estas eram mais espontâneas. Os homens eram mais contidos, mais tensos. Não havia crianças, nem adolescentes.
Como passei a ter mais atenção ao comportamento das pessoas, vi que as cenas exibidas mudavam conforme a reação do público presente naquele instante, naquele cômodo. Não havia seta indicando um rumo a seguir. Por isso entrei em vários cômodos pelos quais já havia passado antes e as cenas exibidas não eram as mesmas. Ora eu olhava para o que estava sendo exibido nas paredes, ora me ligava na reação das pessoas diante do que viam. Isso criou uma certa confusão da minha cabeça, concluí: “isso não tem fim. Cada hora é uma coisa diferente”. Fiquei um pouco perdido, senti vontade de sair: “isso parece um labirinto”, falei comigo.
A saída era pelos fundos da casa. O último cômodo tinha uma estrutura de cozinha. E, ao lado direito da porta, havia um pequeno berço. Dentro dele, havia um cachorrinho como parte do contexto. Ele tinha um movimento cíclico: entrava em algo que parecia um saquinho de dormir. Fechava um zíper, pulsava dentro, ficava um certo tempo, depois o abria levemente, e depois repetia a mesma cena. Mais uma vez a minha curiosidade foi aguçada: “como adestraram esse cachorro para ficar aqui fazendo isso?!”
Como falei, a saída era pela porta da cozinha que dava para um quintal todo gramado. E, no fundo, havia uma cafeteria vazia. Balcão de madeira rústica com pouca iluminação, mas sem ninguém. O estacionamento ficava do lado esquerdo da casa, não havia calçamento na frente dela. Mas não levantada poeira. Era um chão seco.
Pouco entendi. Contudo, gostei do que sonhei.