Razão e sensualidade se unem em ‘Mali Twist’, novo filme de Robert Guédiguian
Para o espectador acostumado a ver os filmes de Robert Guédiguian, Mali Twist, que estreia nesta quinta-feira, 24, reserva não poucas surpresas. No original, o filme chama-se Twist à Bamako. Cineasta francês de ascendência armênia, Guédiguian conta histórias que quase sempre se passam em Marselha, interpretadas pelo mesmo elenco, à frente sua mulher, Ariane Ascaride.
Em momentos pontuais, filmes como Viagem à Armênia e Une Histoire de Fou, de 2007 e 2015, ele já deu o que chama de “escapadas”, filmando em outros países, como o Líbano. Guédiguian agora vai mais longe, à África. Comunista sincero, ele não renega suas crenças. Na entrevista realizada durante o Festival do Rio, conversa sobre seu filme como sobre a política brasileira. Sabe tudo, acompanha o noticiário do Brasil à distância. Conta a origem de Mali Twist.
“Se você vir meus filmes de novo vai concordar que as histórias que se passam em Marselha poderiam se passar em outros lugares, são universais. Nunca havia pensado no Mali, mas em 2017 fui ver em Paris, na Fundação Cartier, as fotos de Malick Sidibé”, o grande fotógrafo que era chamado de ‘o olho de Bamako’ – capital e maior cidade do Mali. “O encantamento foi imediato. Fiquei impressionado com a beleza e euforia daquela juventude com suas roupas extravagantes, dançando. Tive ali uma espécie de clique, uma epifania. Viajei nas minhas lembranças, à revolução de Modibo Keïta no Mali. Influenciados por Fannon, Keïta e outras lideranças africanas dos anos 1960 buscaram uma via original para o socialismo e o desenvolvimento da África. A liberdade daqueles corpos dançando bateu-me como um raio. Saí dali com a cabeça fervilhando. Foi assim que começou a surgir a história do revolucionário e da filha do chefe da aldeia. Tradição e modernidade. Ela está prometida num casamento de conveniência, mas tudo vai mudar. Os jovens amantes vão fugir. Para mim, Mali Twist é sobre razão e sensualidade. Quis mostrar que não se opõem.”
Guédiguian tinha sete anos em 1960 – nasceu em 3 de dezembro de 1953. Viu na TV a imagem que o marcou para sempre, a prisão do político congolês Patrice Lumumba. Não entendia nada, não sabia nada, mas a força daquele homem e a brutalidade do ato sinalizou alguma coisa em sua mente que nunca deixou de acompanhá-lo.
“Vivi intensamente a luta anticolonialista, mas era uma atitude política. A África entrou como representação simbólica em As Neves do Kilimanjaro, de 2011, mas eu nunca havia estado lá. Mali Twist não poderia ser feito à distância. É um filme que necessita da cor e da vibração locais.”
Mali Twist abre-se num mercado africano. Basta essa cena inicial, duas ou três atitudes de Samba para que o espectador saiba tudo sobre o personagem de Stéphane Bak. “Ele sou eu, eu sou ele. Pedi a Stéphane que interpretasse o papel como eu era na época. Idealista, cheio de disposição para mudar o mundo. Samba é um militante. Acredita na transformação, quer entender as coisas, mas também é jovem e quer dançar! O twist como liberdade. Não basta criar condições materiais para melhorar a vida das pessoas. É preciso mudar velhas práticas sociais.”
Samba tem algo de lírico, de ingênuo. De dia trabalha pela revolução. De noite, dança e ama como um louco. Outra história de ‘fou’. “Samba acredita na emancipação das mulheres, em novas formas de relações afetivas e sexuais. Socialismo e liberdade. E sensualidade.”
Desde a escrita do roteiro – em parceria com Gilles Taurand -, Gédiguian tinha muito claro que a luta contra a tradição tinha de passar por Lara, a personagem de Alicia Da Luz Gomes. “Alicia foi maravilhosa. Sua química com Stéphane levou o filme a lugares que não imaginava.” Por razões de segurança, o filme não foi realizado no Mali. “Tivemos de filmar no Senegal, com todo cuidado pela verossimilhança. O cinema tem esse lado mágico. Pode-se criar um mundo através da imagem, e da montagem.”
O twist, movimento dos corpos, metaforiza o movimento da mente. Guédiguian reflete. “Para mim é trágico que o socialismo enfrente tanta oposição. Agora mesmo vemos a direita reflorescer. É chocante a forma como tanta gente se entrega à barbárie.” Daí o retorno a Mali, nos anos 1960. “Os oito anos de governo de Modibo Keïta são algo que precisamos recuperar, e valorizar. Não abro mão de sonhar com outro mundo, melhor.”