Quem seria Anne Frank hoje? Mostra em SP traz imersão no anexo secreto em busca de respostas
Terça-feira, 1º de agosto de 1944. Há exatamente 80 anos e um dia, Anne Frank escrevia o último trecho de seu diário. Anne, naquela data, se colocava entre as descobertas e os sentimentos confusos da adolescência e se descrevia como “um feixe de contradições”.
“Tento achar um modo de me transformar no que gostaria de ser e no que poderia ser se… se não houvesse mais ninguém no mundo”, diz a última frase escrita por Anne, que sonhava em ser escritora e jornalista, em seu diário. Anos mais tarde, pela contribuição do pai, Otto Frank, O Diário de Anne Frank (Ed. Record) se tornaria um dos livros mais lidos do mundo.
Agora, pela primeira vez no Brasil, uma exposição em São Paulo traz uma imersão do que foi relatado no livro. A partir deste sábado, 3, a Unibes Cultural inaugura a mostra Anne Frank: deixem-nos ser, que reproduz de forma fiel o Anexo Secreto, onde Anne escreveu seu diário e teve de se esconder com a sua família, em parceria com a Anne Frank House, em Amsterdã. A exposição foi concebida pela Inspirar-te, uma associação sem fins lucrativos, e levou dois anos para ser arquitetada.
“Como objeto de memória, ele [o Diário] é a descrição da vida, dos sentimentos, dos sonhos, dos projetos de uma menina. […] Além de documento histórico, de objeto de memória, é uma obra de arte. É literatura, é imaginação, é sentimento, é projeção, é sonho”, descreve Eduardo Duíque, curador de artes da exposição, na pré-abertura de Anne Frank: deixem-nos ser na última quinta, 1º.
A mostra, porém, não faz uma mera simulação do que foi o Anexo Secreto: o objetivo é se conectar com a vida e os sonhos das vítimas do Holocausto e, mais do que isso, falar sobre pessoas que sofrem com as mais diversas formas de intolerância até hoje. O título foi baseado em uma das frases do diário – “Deixe-me ser eu mesma e estarei satisfeita” -, mas o plural é usado para mostrar que as “Anne Franks” foram, e são, muitas.
A exposição tece um diálogo entre o passado, o presente e as mazelas que atingem o Brasil. Anne Frank é o centro por conseguir dar rosto, voz, nome e sobrenome às consequências do horror nazista que atingiram um número inacreditável de vítimas.
Os caminhos sombrios do Holocausto
A exposição na Unibes Cultural é dividida em três momentos. Curiosamente, para adaptá-la para todas as idades, um “spoiler” do que aconteceria mais tarde é a primeira coisa vista na mostra: Anne Frank não sobrevive. Segundo o curador-chefe, Carlos Reiss, coordenador-geral do Museu do Holocausto de Curitiba, a escolha de mostrar, já de primeira, “os caminhos sombrios do Holocausto” foi para criar um percurso acessível e confortável para as crianças.
Geralmente, exposições que têm o Holocausto como tema não são abertas a todas as idades. Anne Frank: deixem-nos ser contou com uma curadoria educativa para possibilitar que pequenos de 6, 7 ou 8 anos possam visitar a mostra.
“É importante ter esse ‘spoiler’ como uma ferramenta, porque ele quebra esse horizonte de expectativa, diminui a ansiedade da criança de não saber o que vai acontecer. […] [A criança] não vai ser surpreendida emocionalmente por aquela história”, explica Carlos.
Anne e o Diário dão o tom de toda a exposição, mas outras vítimas do Holocausto também são representadas no percurso. Nesse primeiro momento da mostra, um cheiro de papel queimado logo chama a atenção dos visitantes: há uma representação da queima de livros na Alemanha nazista.
Uma frase de Heinrich Heine, poeta que também teve suas obras queimadas, inspira a montagem: “Onde livros são queimados, ao final também são queimadas pessoas”. Mas o que é mostrado é que as ideias e o legado desses escritores sobreviveram ao fogo. “Em exposições como esta, nós fazemos um manifesto: ‘Vocês perderam. Estes artistas venceram. Estas ideias venceram.’ Eu diria que a luta é permanente, a luta é contínua, a luta é eterna, talvez”, comenta Eduardo Duíque.
Ao lado da fogueira, há uma foto de Anne Frank na escola. Próxima a ela e na mesma pose, surge outra jovem. É Nanette Blitz Konig, colega de sala de Anne. Uma menina judia, enviada para o mesmo campo de concentração da colega, mas que sobreviveu e reconstruiu sua vida no Brasil.
Hoje, Nanette tem 95 anos. Abaixo das imagens das duas, há a estrela original que ela era obrigada a usar em suas roupas – uma insígnia dos nazistas para identificar judeus.
O Anexo
Logo em seguida, o público adentra no segundo momento da mostra. Antes, há uma nova estratégia para preparar as crianças para ter contato com o Anexo Secreto: uma “sala de conforto”, com o nome de Thomas Fritta, ou Tommy Fritta, um dos sobreviventes do Holocausto. Desenhos feitos pelo artista sobre a realidade vivida pelos judeus ilustram as paredes, que, em um dos cantos, trazem uma maquete do esconderijo de Anne e da família.
Entrar na reprodução do Anexo Secreto é se surpreender com a fidelidade do que Anne contou em seu diário. A revista favorita da jovem aparece sobre uma das camas no local e marcações de sua altura e da irmã mais velha, Margot Frank, ilustram as paredes. Ao fundo, sons de sinos e de bombardeios se misturam com uma voz feminina que interpreta trechos do diário.
Nas palavras de Eduardo Duíque, “há humanidade em cada detalhe”. “Um jornal ao lado de uma escrivaninha, um sapato ainda desamarrado ou a louça suja na pia nos remetem à nossa própria vida, à nossa própria realidade, à nossa própria existência e à ideia de que estas pessoas, estes seres humanos, como nós, tentaram manter dentro deste espaço uma vida, uma existência. Talvez até com alguns momentos de risada e esperança em meio ao medo e à destruição”, diz.
Segundo Carlos Reiss, a ideia de reproduzir o Anexo no Brasil foi recebida com entusiasmo pela Anne Frank House em Amsterdã. Poder misturá-lo com obras contemporâneas que contam histórias de intolerância fez com que a equipe da Holanda passasse a ver o projeto com “brilho nos olhos”.
“A partir dos sentimentos que o Diário provoca em nós e em gerações e gerações de crianças e adolescentes, é que foi possível trazer este espaço físico”, afirma ele. “Todas as vezes em que a curadoria encontrou algum tipo de dúvida, de empecilho ou de uma possibilidade de achar um novo caminho, nós retornávamos ao Diário. Na maioria das vezes, era ali que a gente encontrava a resposta para onde seguir.”
As janelas se abrem
A subida da representação do sótão é cheia de simbolismos. Em um corredor escuro, se iluminam duas obras de arte: uma do pintor judeu Lasar Segall e outra de Marc Chagall, também judeu. Ao fundo, a Pomba da Paz de Pablo Picasso surge acima de uma vela acesa – uma referência a um dos trechos do Diário e à identidade do povo judeu.
Se a memória não se apaga, as janelas se abrem. O sótão da exposição não é um ambiente escuro: obras dos mais diversos artistas, internacionais e, principalmente, nacionais, representam “aberturas para se refletir sobre o futuro”. Dentre elas, estão as fotografias de Claudia Andujar da série Marcados, que traz um diálogo entre as perseguições da Segunda Guerra e os problemas enfrentados pelo povo Yanomami.
Mas é certamente o centro o que mais chama a atenção na sala: lá, desponta uma escultura em bronze de uma menina, negra, segurando um livro cravejado de balas acima da cabeça. É No meu céu ainda brilham estrelas, de Flávio Cerqueira, ou, na concepção de Eduardo Duíque, uma “Anne Frank brasileira”.
Mas é certamente o centro o que mais chama a atenção na sala: lá, desponta uma escultura em bronze de uma menina, negra, segurando um livro cravejado de balas acima da cabeça. É No meu céu ainda brilham estrelas, de Flávio Cerqueira, ou, na concepção de Eduardo Duíque, uma “Anne Frank brasileira”.
No meu céu ainda brilham estrelas foi escolhida como “gran finale” da exposição para “dizer que violências e perseguições, intolerâncias e racismo permanecem, mas atos de resistência, de rebeldia, de criatividade também estão presentes”, segundo o curador de artes. Neto de quatro sobreviventes do Holocausto, Carlos Reiss descreve a obra de Anne Frank como “uma porta de entrada” para uma memória construída por milhões de pessoas.
“A memória é diferente de lembrança. A memória só existe porque ela é útil e ela serve para o presente e para o futuro”, diz. “E, se existe algo capaz de fazer esse diálogo entre o passado e o presente, se existe algo capaz de fazer esse diálogo entre territorialidades, é a arte”, completa Duíque.
Serviço – Anne Frank: deixe-nos ser
Quando: De 3/8 a 22/12
Horário: 13h30 às 19h, de quarta a domingo
Onde: Unibes Cultural (1º e 2º andar) – R. Oscar Freire, 2500, Sumaré
WhatsApp: (11) 3065-4333
Classificação indicativa: Livre
Ingressos: R$ 15,00 (inteira) R$ 7,50 (meia-entrada)
Entrada gratuita às sextas-feiras com reserva de ingresso (ingressos liberados às segundas-feiras)