• Prisioneiro do sonho

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  • 03/06/2020 00:01

    Estou em quarentena acorrentado à minha casa, de onde não saio desde 14 de março de 2020. Quer o fato afirmar que estou prisioneiro de um vírus letal e cumprindo religiosamente todas as instruções das autoridades públicas. E tudo está muito bem dessa forma, sabendo ser mais do que conveniente respeitar o isolamento para inibir a proliferação do maligno ser que esvoaça pelo planeta. Faço a minha parte e não detecto em que nível de ignorância ocorre um contraponto de muita gente que desobedece a tudo, infectando iguais e, por fim, infelizes que acabam ocupando os leitos hospitalares e alguns marcando ingresso no infinito dos desatentos ou desobedientes. E eu e minha família, aqui, na trincheira de autêntica guerra para sobreviver a tão cruel pandemia. No meu raciocínio a pior pandemia é o despreparo da politicagem nacional que vem, há muitos anos, lançando a pátria no mais profundo poço de insensatez e despreparo. Ah! e a corrupção, também, este o magno vírus nacional que sempre inchou – e continua engordando – em escala geométrica.

    Alimentando o tempo da quarentena, tenho visitado a varanda de minha melhor saudade, recordando coisas boas e, assim, afastando do pensamento os temores e estresses que acabrunham, abatem e enfraquecem a perfeita estrutura biológica de minha condição de criatura humana. E, assim, tenho vencido as horas revivendo a vida, em tempos de uma mocidade plena de ideais, me emocionando diante de marcantes etapas de minha existência.

    Relembro minha predileção pela arte em todas as manifestações, desde menino rabiscando imagens em papéis de embrulhar pão ou em restos dos cadernos escolares, idealizando as minhas revistinhas em quadrinhos, todas de um único exemplar e uns 10 leitores; uns filminhos desenhados quadro-a-quadro imitando os fotogramas das fitas de cinema e que eram projetados em um lençol esticado em qualquer parede, usando uma caixa acoplada com uma lente de examinar selos para a devida ampliação das imagens; muita saudade dos ingênuos artigos para treinamento da escrita e sonhando vê-los publicados na imprensa, como conseguia meu talentoso pai, sempre um exemplo e estímulo, embora ele nem desconfiasse de que gostaria de ser seu papel-carbono; as emocionantes partidas de futebol com botões, com os primos e a garotada amiga da rua Washington Luís… Ah! e o teatrinho de fantoches, idealizado pelo meu primo Ricardo Melatti, artífice do palco, das marionetes e que eu e Júlio manipulávamos em divertidos personagens, ao estilo da “comédia del´arte”, assistido pelas famílias reunidas e vizinhos convidados,  na varanda da nossa residência.

    Esclarecendo: Ricardo Melatti era um profissional do penteado, pintor, desenhista e habilidoso e criativo fazedor de brinquedos e Júlio, seu filho, hoje é respeitada autoridade em antropologia, expert no indianismo brasileiro, com várias obras publicadas e mestre titular da cadeira na Universidade Federal de Brasília. Meus queridos primos.

    E a leitura? Devorei as coleções de livros de aventuras, policiais, de poesia, romances água-com-açúcar, extasiado muitas vezes diante de reproduções de telas famosas; manuseei enciclopédias (a “Jackson”), dicionários, fui leitor compulsivo…

    E frequentei, semanalmente, o cineminha Santa Cecilia, amando o cinema das produções “B” (faroestes, policiais, seriados, musicais, documentários, jornais-da-tela); ah! que sonho” que saudade!

    Tantas reminiscências do menino feliz ajudam o passar desses perigosos dias nossos de confinamento compulsório de extrema oportunidade e necessidade e que deve ser respeitado e cumprido em plenitude. E na magia do sonho acordado, muito melhor!

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