Presbítero é afastado por críticas a Bolsonaro e ter ‘posições esquerdistas’
“Ou você muda teu pensamento, abandonando as posições esquerdistas e todo o conteúdo marxista cultural que vem com elas, ou você deve, diante de Deus, renunciar ao Presbiterato. Esta relação está altamente incompatível.” O recado do reverendo Ageu Magalhães, um dos líderes da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), veio em tom de ultimato. O aviso foi enviado ao teólogo Flávio Macedo Pinheiro, presbítero da instituição em São Paulo, no dia 12 de dezembro de 2019. Um ano e dois meses depois, Pinheiro foi afastado do cargo, conforme documentos ao qual o Estadão teve acesso.
A punição ocorreu em fevereiro do ano passado, após Pinheiro criticar o governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) e ser taxado como comunista e marxista por defender que mulheres não devem ser consideradas inferiores aos homens, falar em direitos da comunidade LGBT, de descriminalização do aborto e da maconha e divulgar um evento do PSOL sobre o pensamento do educador Paulo Freire.
A decisão foi revertida pela última instância de julgamento da igreja por erros processuais um ano depois e fez o presbítero sair da congregação que frequentava havia 19 anos em Cidade Dutra, na zona sul de São Paulo, para uma igreja no Butantã, também na capital paulista. O caso expõe o cerco de uma das igrejas evangélicas mais tradicionais do Brasil contra fiéis de esquerda enquanto a cúpula da instituição se alinha ao governo do presidente Jair Bolsonaro, como revelou o Estadão. Agora, a orientação pode se tornar oficial com a aprovação de uma resolução do Supremo Concílio, órgão máximo de decisão da igreja, ainda nesta semana. A minuta da resolução indica que os pastores devem orientar os fiéis a se afastarem da “nefasta influência do pensamento de esquerda”.
“Eu fico triste porque a igreja não é para isso. A igreja não deveria usar o púlpito para defender nem quem é de esquerda nem quem é de direita. A política é menos importante, há temas muito mais importantes para tratar”, diz o teólogo, hoje fora de qualquer cargo de liderança na IPB e que critica abertamente o governo Bolsonaro em suas redes sociais.
Ageu Magalhães, autor da denúncia contra o presbítero, é um líder influente na IPB, conhecido por ter um pensamento conservador. Ele dirige o Seminário Teológico Presbiteriano Reverendo José Manoel da Conceição, em São Paulo. Em 2018, Magalhães declarou voto em Bolsonaro e publicou uma foto de perfil no Facebook com a inscrição “PT não”. Membros da igreja temem que essa postura se multiplique neste ano, no meio das eleições, e crentes que não concordam com a postura da cúpula sejam forçados a deixar os cargos e bancos da igreja.
Oficialmente, a IPB afirma que não apoia nenhum governo e que os fiéis têm liberdade para se posicionarem politicamente. O comando da igreja, porém, está diretamente ligado ao governo Bolsonaro. O ex-ministro da Educação Milton Ribeiro, preso no âmbito de uma investigação sobre o gabinete paralelo de pastores no Ministério da Educação, caso revelado pelo Estadão, e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) André Mendonça, indicado por Bolsonaro, são pastores da instituição. O relator da proposta de resolução para expurgar os “esquerdistas” da igreja, reverendo Osni Ferreira, usou o púlpito em Londrina (PR) para pedir apoio à reeleição do atual presidente. O reverendo Roberto Brasileiro, líder máximo da IPB no País, já participou de eventos com Bolsonaro e tem um filho que ocupou cargo de confiança do MEC.
Alvo do processo de afastamento, Flávio Pinheiro é professor de ensino médio, formado em Ciências Sociais, Filosofia, História pela Universidade de São Paulo e Teologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Em 2018, após a vitória da eleição de Jair Bolsonaro à Presidência, Pinheiro foi demitido do Colégio Mackenzie, que pertence à Igreja Presbiteriana. Ele acredita que as críticas ao governo e o alinhamento da IPB a Bolsonaro motivaram o afastamento do colégio e mais tarde do cargo de presbítero. “É uma inquisição porque perseguem alguém entendendo que essa pessoa é um perigo espiritual para a igreja e é também uma perseguição política porque entendem que uma certa visão política não é aceitável para aquele grupo”, afirmou o teólogo. “É inconcebível você se dizer um discípulo de Cristo e pregar alguma forma de intolerância.”
Nas publicações que motivaram o afastamento, o presbítero criticou Bolsonaro em função do discurso ideológico do presidente, se colocou a favor da descriminalização da maconha e do aborto e defendeu os direitos da mulher e da comunidade LGBT, temas sensíveis no meio evangélico. Até mesmo referências a Paulo Freire e aos teólogos Karl Barth e Ariovaldo Ramos foram usadas para pedir a punição.
Arrependimento
Flávio Pinheiro deveria ficar afastado do cargo por tempo indeterminado até que se “arrependesse” de suas declarações, conforme a decisão do Presbitério. A primeira decisão que chancelou a ordem de afastamento da igreja não cita as críticas a Bolsonaro que foram incluídas no processo pelo autor da denúncia. Mas ressalta que o presbítero agiu contra os mandamentos da igreja.
Entre os motivos usados para a punição estão o fato de o presbítero ter negado “a liderança do homem na função de cabeça sobre a esposa”, ou ainda por ter feito interpretações erradas da Bíblia segundo a concepção presbiteriana, além de pregar a leitura de livros de Karl Marx. A punição só foi revertida por um erro processual: o tribunal de terceira instância da igreja entendeu que ele não foi devidamente orientado pessoalmente antes do afastamento.
A preocupação agora é com a aprovação do documento que orienta fiéis a se afastarem do “comunismo” e da “nefasta influência do pensamento de esquerda”, discutido pelo comando da instituição. “Se esse documento for aprovado e quem é de esquerda não puder fazer parte da igreja, vou esperar ser expulso? Eu tenho um filho de quatro anos, não quero ver meu filho crescer em um ambiente desse.”
Procurados, a Igreja Presbiteriana do Brasil e Ageu Magalhães ainda não se manifestaram.