• Pratos de chefs foram parar na caixinha

  • 18/04/2021 16:06
    Por Cleide Silva / Estadão

    Receitas da alta cozinha brasileira foram parar em marmitas ou caixinhas e premiados chefs do País estão reinventando o negócio para sobreviver à crise causada pela pandemia. Sem poder receber clientes, operando por delivery ou com restrições, a gastronomia premium fecha unidades, demite funcionários e está endividada.

    A proporção não é a mesma em relação aos pequenos negócios do ramo, mas todos “vivem uma tragédia”, conforme define o presidente do conselho da Associação Brasileira de Bares e Restaurantes de São Paulo (Abrasel), Percival Maricato. Em um ano, cerca de 350 mil bares e restaurantes encerraram atividades no País – 15% deles no primeiro trimestre de 2021- e pelo menos 1 milhão de funcionários perderam o emprego.

    Helena Rizzo, sócia dos restaurantes Maní e Manioca, de duas padarias e uma casa de eventos, precisou fechar uma cozinha que dava suporte aos estabelecimentos. Premiada como uma das melhores chefs mulher do mundo pela revista britânica Restaurant, ela será a nova jurada do MasterChef.

    “Sobreviver hoje nesse setor é um verdadeiro milagre”, diz Maricato. “Todos estão endividados com fornecedores, com o Fisco, com os trabalhadores.” Rodrigo Oliveira, premiado chef do Mocotó e do Balaio, teve de parcelar dívidas com impostos.

    Segundo a Abrasel, só no Estado de São Paulo foram fechados cerca de 50 mil estabelecimentos desde o início da pandemia, 12 mil deles na capital paulista. Não bastassem os problemas da crise sanitária, Maricato reclama que, neste último fechamento decretado na cidade, foi estabelecida a proibição de consumidores retirarem pedidos nos restaurantes.

    Para ele, é uma medida injusta. “Não dá para entender por que é inseguro o cliente ir buscar o produto, mas não é inseguro entregar esse produto a um motoqueiro que faz a entrega ao porteiro do edifício e depois ao cliente”, diz. “Nesse procedimento tem muito mais intermediários e fica cerca de 25% mais caro por causa do custo da entrega.” A partir do dia 24, os estabelecimentos poderão voltar a funcionar, com restrições.

    Tragédia. O setor tem encaminhado várias demandas aos governos e uma delas é a reedição da MP 936, que permite a redução de jornada e salários, com parte bancada pelo governo federal. Adotada no ano passado, a medida ajudou a manter parte das vagas no setor.

    “A reedição da MP é fundamental nesta fase emergencial para evitar uma tragédia que pode fazer com que chegue a 70% dos bares e restaurantes do País fechando definitivamente”, diz Janaína Rueda, chef e sócia do restaurante A Casa do Porco (que aparece na lista dos 50 melhores do mundo) e do Bar da Dona Onça.

    Em Salvador (BA), os restaurantes ficaram fechados por cerca de seis meses no ano passado, segundo o chef Fabrício Lemos. Ele viveu 13 anos nos Estados Unidos, onde iniciou a carreira como cozinheiro – primeiro fazendo hot-dogs – e hoje é dono do grupo Origem. Ele afirma que precisou recorrer a empréstimos e passou a cozinhar nas casas dos clientes, com todos os protocolos, para poder bancar as despesas próprias.

    DEPOIMENTOS

    Rodrigo Oliveira, do Mocotó e do Balaio

    ‘Retomada é a esperança para sanar débitos acumulados’

    “Estamos em modo de sobrevivência. Tentamos equilibrar as contas com o delivery, única fonte de renda atualmente, mas não chega nem perto se comparado ao funcionamento normal. Até hoje, não mandamos ninguém embora entre os 60 funcionários do Mocotó. Já no Balaio, tivemos de desligar algumas pessoas. Ele fica no Instituto Moreira Salles, na avenida Paulista, e tinha ligação direta com os escritórios e bancos do entorno e essa turma toda está em home office. Antes da pandemia, o delivery representava 20% do faturamento do Mocotó. Agora, é 30% do que faturávamos antes, mas 100% das vendas atuais. O Balaio, que começou a operar com delivery na pandemia, fatura 10% do que era antes. Temos quatro cafés, todos operando só para entregas. Nas datas comemorativas, como a Páscoa, criamos cestas com menu específico para ser finalizado em casa. Também compramos uma empresa de embalagens que são muito eficientes, usam 97% de papel e tem película impermeável. É a Squadra, de Guarulhos, que atende também os melhores restaurantes de São Paulo. Estamos no fim das nossas reservas. Tivemos de atrasar alguns impostos; agora parcelamos e estamos tentando quitar. A esperança é de uma retomada a médio prazo para podermos sanar os débitos acumulados. Logo no começo da pandemia fechamos as portas e assumimos um compromisso de colocar nossa expertise a serviço da comunidade. No mesmo dia, começamos a servir refeições para o pessoal da comunidade e não falhamos nenhum dia. São 100 a 120 refeições diariamente. Foram mais de 55 mil servidas até agora. Também doamos cestas básicas com produtos orgânicos para 200 a 250 famílias por mês, com alguns apoios e vaquinhas.”

    Helena Rizzo, do Maní e do Manioca

    ‘Delivery ajuda a manter os empregados’

    “Está todo mundo muito mal. O que nos tem ajudado a manter funcionários é o delivery. Quando veio a pandemia, ficamos com o Maní fechado um mês e meio. Tínhamos dinheiro em caixa e achávamos que dava para aguentar, mas não foi suficiente. O Manioca já trabalhava com delivery e, em maio, iniciamos no Maní. Temos duas padarias e tínhamos duas cozinhas independentes que preparavam as bases para as padarias e os restaurantes (massas, molhos, caldos etc). Tivemos de fechar uma e cancelamos um curso livre de quatro meses com teoria e práticas. Estagiários começavam naquela cozinha. O movimento como um todo caiu 50%. Tínhamos 300 funcionários e demitimos 20%, basicamente pessoal em fase de experiência e alguns que pediram para sair. Reformulamos os cardápios, que ficaram mais enxutos e passamos a ter maior controle de custos de insumos. Passamos a fazer kits de produtos para famílias, com vendas em nossa loja virtual. O delivery foi uma surpresa boa e passou a representar 60% a 80% do faturamento. Não é igual ao restaurante aberto, não paga todos os custos, mas ajuda a segurar a onda. Trabalho mais do que antes, apesar das restrições de horário, pois o tempo todo temos de inventar promoções, pratos diferentes para fins de semana e datas comemorativas. Queria deixar clara minha decepção com a falta de apoio do governo a um setor tão importante, que emprega tantas pessoas.”

    Fabrício Lemos, do grupo Origem

    ‘Cortamos 40% do nosso quadro de funcionários’

    “Passamos vários meses com nossos três estabelecimentos fechados no ano passado. No Ori, que tem cardápio mais casual e servia almoço e jantar, foi mais fácil adaptar ao delivery. O Origem, nossa marca mais conhecida, trabalha com menu de degustação da culinária baiana tradicional e só funcionava à noite, com capacidade para 86 pessoas. Em junho, passamos a oferecer pratos para as pessoas montarem em casa, com integração comigo por meio de tutorial pelo Instagram. O Gem, minibar para 12 pessoas, foi aberto em janeiro de 2020 e servia bebidas e mini hambúrgueres. Em março, veio a pandemia e mudamos tudo. Passamos a fazer hambúrgueres maiores para entregas e teve boa saída. Em agosto, tivemos de cortar 40% do nosso quadro de 65 funcionários. Em outubro, reabrimos e avaliávamos recontratar, mas em janeiro recomeçaram as restrições. Sem poder funcionar à noite, o Origem fechou de novo. Fizemos um menu a la carte para delivery, mas não deu muito certo. Ele não é rentável, mas é nossa âncora em termos de imagem. Ficamos sem capital de giro e traçamos uma meta de gastos e conseguindo ficar no zero a zero graças aos hambúrgueres. Estamos pagando um empréstimo de R$ 470 mil feito ano passado e os impostos, mas eu não estou tirando nada. Para ter uma renda própria, vou às casas de famílias preparar o menu degustação, com todos os protocolos. Com isso, pago minhas contas.”

    Janaína Rueda, do A Casa do Porco e do Dona Onça

    ‘Acumulamos impostos e empréstimos’

    “Em março de 2020, fechamos todas as nossas casas e ficamos quase quatro meses parados. Minha rotina, no início, foi cozinhar para pessoas em situação de vulnerabilidade social, organizar coleta de doações e buscar meios de contribuir com o setor de gastronomia, tão impactado pela crise. Ao mesmo tempo, pensamos em soluções para manter os negócios sem colocar vidas em risco. Criamos um novo modelo de delivery que permite levar parte da experiência dos restaurantes para a casa das pessoas, com criatividade e qualidade. Depois entramos no mercado popular de delivery. Fez tanto sucesso que virou um novo negócio e ganhou uma cozinha própria, que funciona como um refeitório. Também abrimos a Mercearia do Centro virtualmente, para entrega de embutidos e kits com receitas para serem finalizadas em casa. Conseguimos a aprovação da MP 936, que assegurou os salários dos funcionários por três meses. Lógico que não foi suficiente, muitos restaurantes quebraram, mas permitiu que aqueles com algum caixa e condição melhor aguentassem. A reedição da MP é fundamental nesta fase emergencial para evitar uma tragédia ainda maior, que pode fazer com que se chegue a 70% dos bares e restaurantes do País fechando definitivamente. As novas restrições neste ano, que entendemos serem necessárias, diminuíram novamente o faturamento. Estamos com uma dívida grande, acumulando impostos e empréstimos. Não temos como colocar mais dinheiro nas casas.”

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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