• Percepção de nossos fatos históricos: um outro olhar sobre uma pesquisa

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  • 15/01/2022 08:00
    Por Gastão Reis

    É bem vinda a iniciativa do Observatório Febraban de encomendar ao Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas (Ipespe) uma pesquisa sobre a percepção da população brasileira de nossos fatos históricos mais relevantes. E também a matéria assinada pelo jornalista Marlen Couto sobre ela publicada no Globo de domingo, 09/01/2022, data em que comemoramos os 200 anos do memorável Dia do Fico, protagonismo de D. Pedro I e Dona Leopoldina, e prenúncio da independência. A análise dos resultados nos permite tecer comentários sobre a sabedoria convencional em relação à nossa História através de um olhar alternativo dos fatos e de sua real dimensão.

    Antes disso, esclareço que o espírito deste artigo incorpora a proposta do texto “The Dawn of System Leadership” (“O amanhecer da liderança com visão sistêmica”, em tradução livre), de autoria de Peter Senge, Hal Hamilton & John Kania, publicado, em 2015, na Stanford Social Innovation Review. Eles nos falam das ações de Mandela como um líder de visão sistêmica (system leader, em inglês), que é definido como uma pessoa catalisadora da liderança coletiva.

    “Talvez”, dizem eles, “o exemplo mais transcendente de Mandela como system leader foi a criação da Comissão de Reconciliação e Verdade, uma inovação radical para a cura das feridas emocionais do país que juntou líderes sul africanos, negros e brancos, para confrontarem o passado e, de mãos dadas, moldarem o futuro do país.” Foi um belo gesto civilizatório de Mandela colocar frente a frente os que sofreram os horrores do apartheid e aqueles cujas ações levaram àquelas perdas para expressar suas verdades, perdoar-se e seguir adiante.

    Cabe registrar a presença, que os autores não mencionam, de Edward De Bono, como facilitador na Comissão. Ele é autor de livros instigantes como “Pensamento Lateral” e “Seis Chapéus Pensantes”. Este último apresenta uma técnica que permite explorar situações diversas sob seis ângulos diferentes que levam a resultados mutuamente satisfatórios para as partes envolvidas.

    Passemos agora ao olhar alternativo numa direção não abordada pela matéria publicada no Globo, citando partes do texto de Marlen Couto e pessoas consultadas por ele.

    A Lei Áurea foi citada por 31% dos entrevistados como o momento mais significativo de nossa História, seguida de 18% que responderam ter sido a independência em 7 de setembro de 1822. A primeira observação é que quase metade deles (49%) viram nestes dois fatos, ocorridos ainda no regime monárquico, como os mais significativos de nossa História. A seguir, vieram os oito eventos ocorridos na república, com respectivo percentual: 3º Proclamação da república (8%); 4º Fim dos governos militares e redemocratização (8%); 5º Impeachment da Dilma (8%); 6º Operação Lava-Jato (6%); 7º Plano Real (4%); 8º Impeachment do Collor (4%); 9º Implementação do Bolsa Família, hoje Auxílio Brasil (3%); e 10º Golpe de 1964 e regime militar (2%). Recoloquei o impeachment de Collor em 8º lugar em função do percentual de 4%.

    Ao longo do regime republicano, quatro fatos são claramente positivos (Redemocratização em 1985; Lava-Jato; Plano Real; e Bolsa Família). Os outros quatro refletem disfunções gritantes da república (o Golpe de 1889 sem participação popular; impeachment de Collor; impeachment da Dilma; e o Golpe de 1964). Situações típicas do desastrado presidencialismo latino-americano. O lado patético é a intervenção militar em dois deles e a necessidade de dois impeachments, problemas graves que o regime parlamentar resolve por simples quebra de confiança sem a necessidade comprovar crimes de responsabilidade como ocorre no presidencialismo.

    Vejamos agora pontos equivocados ou que revelam desinformação. O percentual de 54% de negros na população brasileira vem sendo repetido pela mídia com frequência, inclusive na matéria em análise, se valendo do suposto aval do IBGE. Na verdade, no censo de 2010 do IBGE, nos é informado o seguinte: brancos (47,51%); pardos (43,42%); negros (7,52%); amarelos (1,1%); e indígenas (0,42%). É revelador que Obama, em vídeo, tenha afirmado que não era branco nem preto, mas mulato. Qual seria o sentido dele negar metade de seu sangue, o de sua mãe branca? Estava celebrando a miscigenação, fenôme-no marcante no caso brasileiro, incomum ou inexistente no resto do mundo. Os 43,42% de pardos, que incluem os mulatos, devem ser reafirmados por nós, além de ser o percentual que mais cresce na composição de nossa população.

    A permanência no Brasil do racismo cotidiano, institucional e estrutural, nas palavras do Prof. Thiago Amparo, da FGV, deveria ter vindo contraposto ao racismo visceral americano que continuou após a Guerra Civil e se estendeu até a década de 1960(!) com a segregação legal e social dos negros. Os EUA foram, sim, um país retardatário em lhes conceder direitos efetivos. Francisco Glycerio, presidente do Partido Republicano Paulista, pôs no papel que estava brigando pela república e não pela abolição. O Império optou por uma solução gradual bem mais competente do que a Guerra Civil americana em que morreram 630 mil americanos. Afinal, 80% das pessoas de origem africana já eram livres quando a Lei Áurea foi assinada. A república é que deu ouvidos à manutenção da desigualdade acalentada por Francisco Glycerio; não o Império.

    A Profa. Janaína Cordeiro de História, da UFF, nos diz que o Grito do Ipiranga teria menos apelo na população do que a abolição por ter sido construído “de cima para baixo”. Em contraposição, o livro “História da Independência do Brasil”, em 4 volumes, coordenado pelo Prof. José Murilo de Carvalho, nos informa da intensa participação popular nas tabernas e espaços públicos onde as pessoas se reuniam para ouvir e debater as notícias nos anos que antecederam a independência. A professora, pelo jeito, esqueceu das lutas da população negra, parda e branca da Bahia na construção da independência.

    Face ao descrédito dos poderes e instituições, constatado por pesquisa do Datafolha, que tal reproduzir no Brasil o belo gesto civilizatório de Mandela?

    (*) NOTA: Brincando com fogo: Alckmin ou ÁlcoolEmMim? Ele decide.

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