• Pelas desimportâncias

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  • 18/06/2023 08:00
    Por Ataualpa A.P. Filho

    Optar hoje por uma vida analógica requer um pouco mais de tolerância. Ironias e críticas, levo numa boa, porque sei que faço uma opção fundamentada em valores que priorizam o contato humano. O que geralmente me deixa contrariado consiste no fato de não poder efetuar determinadas compras, porque o estabelecimento comercial não aceita pagamento em cédulas, só em cartão. Às vezes, percebo que pessoas, por usar o cartão, recebem tratamentos diferenciados. Mas isso não estraga o meu humor. Aceito, sem problemas, o ônus das minhas limitações. Isso não me afeta. Porém, só não sei precisar até quando vou continuar com esta resistência para não efetuar pagamento em Pix.

    Não sou neofóbico. O novo não me assusta. Não se trata de ter medo do que se apresenta como moderno. Os amigos mais próximos sabem o quanto resisti para não entrar em redes sociais. Hoje é quase impossível não ter acesso a elas. Comunica-se mais por aplicativos do que por ligações telefônicas. Atualmente cartas entre amigos são raras. 

    Não me incluo entre os últimos românticos. O problema é que tenho dificuldade para apaixonar-me à primeira vista. Antes do namoro propriamente dito, é preciso estabelecer laços afetivos. Da minha janela, vejo os sanhaços. Nunca vão direto à comida. Pousam em um galho, depois em outro; olham para um lado, depois para o outro; aproximam-se do alimento quando se sentem seguros. Foi o próprio tempo que me ensinou a ter cuidado com a velocidade do futuro. 

    Aqui, quero apenas pedir um pouco de paciência com quem ainda não ingressou no mundo digital. Acho que merecemos respeito. Não falo só por mim, pois já estou calejado, assimilo bem os golpes. Vejo uma certa intolerância com quem ainda não se sente seguro diante das novas tecnologias.

    Outro dia, a manhã avançou pela minha tarde. Quando me dei conta, estava sem almoço, olhei para o relógio, eram 15:45. Teria que fazer dois depósitos em uma agência bancária e estava com duas contas por pagar. Optei por ir à agência mais próxima. Saí apressado com os documentos, o celular e a chave de casa. Como não ando desprevenido, levei o jornal para ler, caso tivesse que entrar em fila. O acaso conspirou a meu favor. O elevador estava parado no nono andar. Entrei com os olhos nas manchetes. No oitavo, entrou um vizinho, cumprimentei-o como reza o manual das boas etiquetas. Mas, logo ouvi a seguinte frase:

    – Você ainda lê jornal impresso?! – A pergunta veio com um tom que me transportou para o Século XIX.

    – Sim, ainda compro jornal em banca, leio livros impressos. Gosto de manuseá-los. Faço isso diariamente…

     A conversa não foi muito longe. O meu pensamento pairou sobre algumas respostas contidas pelo silêncio. O hábito da leitura amplia a compreensão das nossas limitações e a dos nossos semelhantes. 

    É preciso ter coragem para romper o vazio que há dentro de nós e preenchê-lo com o aprendizado proveniente da convivência marcada pela reciprocidade do respeito. Pelo exercício da humildade, encontra-se o caminho que leva a aceitar o próximo como ele é, sem querer transformá-lo naquilo que desejamos que ele seja.

    Cheguei ao banco 15:55. Peguei a senha do atendimento. Para relaxar, comecei a ler o jornal pelos quadrinhos, depois passei para o caça-palavras, quando no painel apareceu o meu número:

    – Tudo bem, professor?! Em que posso ajudar? O senhor foi meu professor de Literatura. Lembra de mim?

     Como já passei por várias situações semelhantes, arrumei um jeito de não ficar muito embaraçado: olho para a fisionomia do ex-aluno, ou ex-aluna, faço um cálculo rapidamente e cito uma escola em que trabalhei durante esse período.

    – Lembro! Você foi minha aluna no Liceu! Agora não me lembro do seu nome…

    Acertei o Colégio. Mas ela não pôde me ajudar tanto assim. Fiz os depósitos, mas não consegui pagar as contas. O banco não as recebe.  Saí da agência e fui encarar a fila da lotérica. Se tivesse uma vida digitalizada certamente não passaria por isso. 

    Na fila, li matérias sobre pessoas que se consideram importantes, famosas, celebridades, porém agem sem o menor compromisso com a ética, nem com a moral. Ali, em pé, resolvi escrever este texto não como desabafo, mas para expor o que disse o Mestre:

    “Eu vos garanto que se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis no reino dos céus. Quem se fizer pequeno como esta criança será o maior no reino dos céus.” (Mt 18, 3-4)

    A arte de viver consiste na simplicidade que as crianças externam. São consideradas desimportantes. Vivem distantes das vaidades. Não julgam as pessoas pelo domínio do vil metal.

    – E eu, por aqui, vou devagar com o an-dor…

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