Pecados capitais da constituição dita cidadã
O Brasil vem-se debatendo, desde a década de 1980, com um crescimento medíocre, e até negativo, da renda real per capita. Na década de 1981 a 1990 e na (quase) década de 2010 a 2018, encolhemos 0,3% ao ano. Ou seja, de cada 100 reais ganhos no início delas, este valor decaiu para 97 em termos de poder efetivo de compra. Nas outras duas, de 1991 a 1990 e de 2001 a 2010, o desempenho do mesmo indicador foi, respectivamente, um pouco melhor, de 0,8% e de 2,5% ao ano. Em relação ao mundo e à América Latina, perdemos, e muito, em termos de posição relativa. Mas a pior notícia é a seguinte: estudo recente projeta que, até 2030, capitais como Rio, São Paulo e Porto Alegre estarão com sua capacidade de investimento comprometida nas áreas de saúde, educação e infraestrutura. A razão é o excesso de gastos com salários, aposentadorias e pensões. Para tornar o quadro mais grave ainda, nas demais capitais estaduais e municípios do país, o imbróglio não é nada diferente.
O alarme soou, mais uma vez: estamos diante da péssima notícia de emplacar mais uma década perdida, caminhando em direção a meio século de paralisia, vale dizer, de crescimento rasteiro, se nada for feito. Há consenso entre economistas de que o Brasil deveria estar investindo cerca de 25% do seu PIB, mas se encontra aprisionado na preocupante faixa de 16 a 18%. Como nos metemos nessa sinuca de bico?
Iniciemos pelo reboliço provocado pela fala do deputado Ricardo Barros, líder do governo Bolsonaro na Câmara Federal, em 26/10/2020. Ele propôs a convocação de uma constituinte para reequilibrar a área de atuação dos diversos poderes da dita república brasileira em função de a Carta de 1988 ter deixado o Brasil “ingovernável”. (Aliás, uma das raras previsões em que o ex-presidente Sarney acertou na mosca.) Ato contínuo, ministros e ex-ministros do STF e entidades se apressaram em defender a atual constituição. Ayres Britto, ex-presidente do STF, afirmou que “enquanto tivermos um pé atrás com a Constituição, o Brasil não irá para frente”. Com o devido respeito, eu me permito, na ilustre companhia de Roberto Campos e de outros de igual calibre, discordar em gênero, número e grau do ilustre ex-presidente do STF. A atual constituição tem, sim, considerável responsabilidade pela marcha lenta a que o país está condenado há décadas.
(Proponho ao leitor(a), em benefício da brevidade deste artigo, algo inusitado: digitar no Google o título do artigo “A Constituição de 1988 na visão de Roberto Campos”, do desembargador e presidente da Academia Internacional de Direito e Economia, Dr. Ney Prado. No Estadão, de 24/10/2017, onde foi publicado, o jornal nos faz um resumo citando Roberto Campos: “Uma mistura de dicionário de utopias e regulamentação minuciosa do efêmero”. Mais de 100 emendas!)
O equívoco maior da Carta atual foi misturar legislação constitucional com a ordinária com efeitos explosivos a longo prazo. Este foi o primeiro e mais grave pecado mortal. A constituição com maior participação popular de nossa História pariu um Frankenstein: grupos de interesse conseguiram garantir seus privilégios sem verificar como ficava no conjunto da obra S.M. o Interesse Público. Este elemento fundamental de uma boa carta não estava presente.
A proposta de uma nova e enxuta carta constitucional, a ser divulgada em cerca de seis meses, vem sendo elaborada pelo deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança e sua equipe de competentes juristas. O objetivo maior é recolocar no topo do texto constitucional o Interesse Público, evitando as distorções impostas por grupos que só se curvam para contemplar o próprio umbigo. O resultado lamentável do texto de 1988 foi coerente com o modo sub-reptício, centrado em lobbies nocivos, que presidiu sua elaboração. A denominada Constituição Cidadã de Ulysses Guimarães acabou servindo aos cidadãos do topo na alta burucracia. Vejamos por quê.
O segundo pecado mortal foi a organização político-partidária estabelecida pela atual constituição. Ela não instituiu o voto distrital puro e nem a possibi-lidade de revogação de mandatos (recall) pelos eleitores, que são dispositivos corriqueiros nas grandes democracias. Ela não deu aos eleitores poder efetivo sobre os políticos, restando-lhes o sentimento de serem manipulados a cada eleição. Afinal, desigualdade brutal, corrupção sistêmica e políticos que não os representam foi a trinca maléfica que se consolidou. Para piorar, a absurda quantidade de partidos impede que os responsabilizemos por seus erros bem como mascara a nitidez ideológica de cada um deles. A cláusula de barreira foi dada como inconstitucional pelo STF em 2006, com arrependimento posterior.
Na área de segurança pública, vamos detectar o terceiro pecado capital: o sistema de turnos de 24 por 72 horas e aposentadorias precoces nas polícias. Trabalhar um dia e folgar três impede que as PMs e a Polícia Civil tenham foco, levando-as a desempenho abaixo do medíocre na elucidação de crimes, que acabou gerando a correta percepção de insegurança crônica junto à população. Aposentadorias precoces alimentaram os quadros das milícias, que vem atuando em conluio com os traficantes, em especial no Rio de Janeiro. O ex-ministro Raul Jungmann em texto publicado no Estadão, de 28/10/2020, nos alerta que é preciso evitar que o Rio de Janeiro seja o Brasil de amanhã.
O efeito combinado destes dois últimos pecados mortais – eleitores sem poder e insegurança estrutural – agravaram o drama da educação pública de qualidade na medida em que a profissão de professor, em função da indisciplina nas salas de aula, da má remuneração e do desprestígio social, deixou de atrair os melhores universitários. Na Coreia do Sul, os professores são oriundos do terço superior dos universitários, já os nossos estão saindo do terço inferior. O futuro promissor vem se diluindo nas brumas do tempo.
Como constatamos, a disfuncionalidade é estrutural na Carta de 1988.
A bem da verdade, um dos poucos pontos positivos dela foi a independência do Ministério Público e da Polícia Federal no combate efetivo da corrupção dos poderosos do dia. A república, por sua vez, levou um século para lhe dar respaldo jurídico, coisa que o poder moderador resolvia a contento até 1889.