Peça ‘Pequod – Só os Bons Morrem Jovens’ encerra trilogia de irmãos
Para o dramaturgo e diretor Mário Bortolotto, de 59 anos, sua criação nasce da revolta, da indignação com a vida que se manifesta todos os dias. Claro, no último ano e meio de pandemia, esse inconformismo só aumentou diante da miséria escancarada nas ruas, de pessoas matando a fome com lixo e do descaso com as centenas de milhares de vítimas da covid-19. Bortolotto, porém, reconhece que a mesma vida que lhe causa repulsa tem sido generosa com ele. “Trabalho com o que gosto, ganho algum dinheiro, tenho bons amigos e levei três tiros em um assalto e continuo aqui, acho que não posso reclamar muito”, justifica.
É sobre conciliação que trata um dos textos produzidos por ele neste isolamento – um olhar terno para as diferenças que, com a maturidade, podem ser apaziguadas. Pequod – Só os Bons Morrem Jovens estreia no formato digital nesta sexta, 8, e segue até o dia 24, de sexta a domingo, às 19h, no YouTube do Teatro Sérgio Cardoso, com ingressos gratuitos. No drama, os irmãos Nando e Maurício (interpretados por Bortolotto e Nelson Peres) se reencontram em razão da morte do pai. O acerto de contas leva a entender o quanto as personalidades contrastantes de cada um deles minou um relacionamento familiar que já era conturbado. Os atores Fernando Castioni e Rebecca Leão completam o elenco.
Com essa retomada da história de Nando e Maurício, Bortolotto encerra a trilogia iniciada com as peças Fica Frio, escrita em 1989, e Tempo de Trégua, de 2000. Na primeira, Nando é o filho desajustado em comparação ao irmão exemplar, que recebe do pai a missão de trazê-lo de volta para casa. A segunda é ambientada em uma noite de Natal em que Nando encontra Maurício cada vez mais enquadrado nos moldes da família. “Queria estabelecer a diferença de escrever sobre os mesmos personagens com 20 e tantos anos, depois com 40 e agora beirando os 60”, explica. “Vejo que o Nando não mudou, assim como eu também não. Achei que passaria a valorizar coisas que desprezava na juventude, mas isso não aconteceu.”
Tal qual o personagem, Bortolotto se vê cada dia mais cético, desesperançado com o futuro – e essa visão não tem a ver com a pandemia. “Eu só percebo que estou certo e, claro, preferia reconhecer meu erro”, diz. Por isso, ao contrário de Fica Frio e Tempo de Trégua, o autor, desta vez, transforma a realidade e reaproxima os irmãos no final. “O Maurício é um cara bom e se enxerga tão infeliz quanto o Nando, são dois derrotados, que estão velhos e ganham um desfecho em que fica claro o amor.”
A morte de um grande amigo, o ator André Ceccato, em julho, ajudou Bortolotto a ressignificar alguns conceitos. “O Ceccato morreu de tristeza, porque a vida dele era fazer teatro, passar no bar, paquerar as meninas, acredito que ele aguentaria firme mais uns cinco anos”, lamenta. Por outro lado, viu Nelson Peres, parceiro em Pequod – Só os Bons Morrem Jovens, sobreviver a um enfarte, retomar a disposição ao trabalho e, mesmo com sérios problemas de visão que dificultam a leitura, memorizar os diálogos da peça. “Nós gravamos o texto, o Nelson decorou tudo ouvindo e estamos felizes por estarmos vivos e no palco.”
Para segurar a onda, Bortolotto criou as próprias flexibilizações nos últimos meses. De vez em quando, chama quatro ou cinco amigos e cada um leva sua bebida para bater papo no Teatro e Bar Cemitério dos Automóveis, sede do seu grupo, na Rua Frei Caneca. Contrariando a crise, o diretor manteve em dia o aluguel do espaço, mas acredita que até o fim de dezembro devolverá as chaves. “O problema é que agora, perto de reabrir ao público, rolou uma infiltração no prédio que inundou a cabine técnica e o síndico não parece disposto a resolver.”
Antes disso, ele estreia em 2 de dezembro um outro espetáculo digital, O Homem Que Matou Liberty Valance, na companhia dos atores Sergio Guizé, Bianca Bin e Carcarah. Para 2022, uma mostra de repertório, com as peças Nossa Vida Não Vale um Chevrolet, Killer Joe e Oeste Verdadeiro, ganha o palco presencial com outros dois textos inéditos, Vivendo com Crocodilos, de sua autoria, e um outro ainda indefinido, de um dramaturgo estrangeiro, também em torno da temática familiar.
E, na introspecção, o ator, dramaturgo e diretor olhou para o próprio passado, o de religioso, e escreveu o romance Nem o Céu, nem o Inferno, com lançamento prometido para o ano que vem. A inspiração nasceu da sua experiência como seminarista, dos 12 aos 17 anos, nas cidades de Ourinhos e Apucarana, que vem à tona com o devido distanciamento. “Tem gente que enxerga os seminários como lugares maravilhosos e outros como algo muito escroto, quero contar minha vivência que não teve nada de tão bom, mas também não foi um horror.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.