Peça ‘O Arquiteto e o Imperador da Assíria’ ganha nova versão de César Ribeiro
Minutos antes da conversa, o diretor paulistano César Ribeiro, de 50 anos, avisa que não costuma dar entrevistas. Foram só três desde 2007, contando com a que se inicia. “Não me interessa ser conhecido, quero que as pessoas foquem no meu trabalho”, justifica o artista, alegando que também é excessivamente tímido e não confia em sua memória, confundindo datas e situações. “Para ter noção, não me lembro de absolutamente nada da minha vida antes dos 12 anos.”
Os argumentos de Ribeiro descem ladeira abaixo no decorrer do papo. Com um atraso de 18 meses, por causa da pandemia, o encenador coloca em cartaz O Arquiteto e o Imperador da Assíria, peça escrita pelo espanhol Fernando Arrabal em 1967, em montagem protagonizada por Eric Lenate e Hélio Cícero, que estreia nesta sexta, 24. A temporada presencial, no Centro Cultural São Paulo – Sala Jardel Filho, segue até 24 de outubro. As referências para a concepção do espetáculo são muitas e todas muito bem defendidas, prova de que Ribeiro arquiva e faz uso na hora certa das influências que formam o seu teatro.
O Arquiteto e o Imperador da Assíria é ambientada em uma ilha deserta. É por lá que vive, isolado, o tal arquiteto (interpretado por Lenate). De repente, ele ouve um estouro. Um avião que caiu, e o único sobrevivente, o imperador (papel de Cícero), chega impondo ao nativo conceitos de cultura e civilização. A ilha não tem nada de bucólica, árvores verdes e frutíferas ou um mar convidativo para o banho. “Tiramos toda a natureza e artificializamos o pouco que resta”, antecipa o diretor. “A cenografia de J.C. Serroni é influenciada pelo artista plástico suíço H. R. Giger, criador do conceito dos filmes da série Alien, aquele universo metálico em que tudo é indústria.”
A atuação de Cícero carrega referências do filme Ran, do japonês Akira Kurosawa. Em meio às falas dos personagens, despontam fragmentos do texto de Samuel Beckett conhecido como Falhar Novamente e do editorial do jornal Correio da Manhã, que defendeu o golpe militar de 1964. “O original caminha para uma inversão de papéis no final, mostrando que todo explorado diante da oportunidade será um explorador”, diz Ribeiro. “Subvertemos essa ideia e, agora, o ser primitivo aprendeu o que é a civilização e, quando se vê diante de um novo invasor, quer é declarar guerra.”
Ribeiro enxerga lados positivos, sob a ótica de criação, no adiamento da estreia, marcada para 27 de março de 2020. O encenador gosta de processos longos – e este, para seus padrões, tinha sido curto, pouco mais de dois meses.
“Ganhamos outro entendimento da obra por causa do confinamento, da revolta contra o governo Bolsonaro e das 600 mil mortes, então vamos para o palco mais furiosos, porque temos nas mãos uma peça antifascista”, justifica. Para se ter ideia, sua versão de Esperando Godot, de Beckett, lançada em 2016, foi trabalhada por três anos. Rodrigueanas, outro projeto interrompido pela pandemia, que reúne dois espetáculos baseados em Nelson Rodrigues, a peça Doroteia e uma outra que condensa Toda Nudez Será Castigada e Os Sete Gatinhos, começou em 2017. O monólogo O Estrangeiro, de Albert Camus, era ensaiado havia um ano pelo ator Paulo Campos até chegar a covid-19.
Quem vê Ribeiro absorvido pelo teatro, talvez duvide de que seu interesse demorou a se manifestar. Era tomado pelo tédio nas excursões escolares que o levavam para assistir às peças na adolescência, quando morou no Rio de Janeiro. “Mas, de volta a São Paulo, vi Paraíso Zona Norte, do Antunes Filho, e The Flash and Crash Days, do Gerald Thomas, e descobri que esse negócio podia ser legal”, conta. Como ator, participou de, entre outras montagens, na década de 1990, de Laranja Mecânica, dirigida por Olayr Coan, e Seis Graus de Separação, comandada por Jorge Takla. “Era um jeito de desafiar a timidez, ficava tenso o dia inteiro e só me livrava do sofrimento na hora em que pisava no palco.”
O encenador veio da facilidade para costurar dramaturgias, ainda nas aulas do Indac, escola em que se formou. Subterrâneo, a primeira direção, de 1995, nasceu de texto de Dostoievski e abriu espaço para a trilogia completada por Desimagem, sobre Charles Baudelaire, e Millenium, a partir de Edgar Allan Poe. “Entendi que poderia trazer para o teatro o que gostava, como cinema e histórias em quadrinhos, e criar uma colagem de referências que fugia do realismo, do naturalismo tão rejeitado por mim”, completa Ribeiro, dono de uma memória nem tão falha assim, sobre a sua forma ideal de expressão.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.