• Pé de pombo

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  • 23/10/2022 08:00
    Por Ataualpa Filho

    Sei que alguém pode duvidar da minha sanidade, pois neste contexto caótico em que o extremismo inviabiliza diálogos, em que o “vale tudo” na disputa de votos rompe com princípios éticos, em que o falso moralismo se apropria de conceitos religiosos para explorar a ingenuidade e a boa-fé de fiéis, estou aqui a escrever sobre pés columbinos. Desculpe, mas esta é a minha maneira de desintoxicar. 

    Acredite. Há meses, venho observando os pés dos pombos. Criei coragem para falar deste assunto depois que um amigo, após ler a crônica na qual narrei a discussão entre uma viúva, que enterrou um pássaro no canteiro de um condomínio, e o dono de um cachorro que desenterrou a ave sepultada. O episódio narrado o fez lembrar o tempo de infância, os anos vividos no interior de Minas. 

    Disse-me que brincava de enterro com os amigos: quando morria um animal doméstico, arrumavam uma caixa de papelão, colocavam o falecido e a meninada encenava um velório. Um ficava encarregado do ritual de exéquias, encomendava a alma do bicho. Outro fazia o trabalho de coveiro. As meninas se comportavam como se fossem viúvas, fingiam um choro entristecido. Os adultos riam, porque identificavam quem estava sendo imitado.

    Mas, voltando aos pés columbinos, quero dizer que esta minha preocupação surgiu por acaso:

    Após assistir a uma missa na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, fui com a Marta comer um pastel na cantina que fica ao lado. Quando caia alguma migalha da massa ou da carne moída, os pombos vinham comer. Quando caia do pastel da Marta, os pombos corriam para o lado dela. Só que, nesse vai e vem, um pombinho não conseguia comer nada, pois sempre era o último.

    – Marta, aquele pombinho ali não arruma nada. Não consegue andar direito. Não tem dedos nas patas…

    Quando ela percebeu isso, despertou o sentimento de piedade: passou a jogar pedaços de pastel para ele. Quando arremessava, o pombo voava. Quando voltava, os outros já tinham comido as migalhas. Foram cenas engraçadas!…

     – Como fazer aquele pombinho comer alguma coisa se os outros não respeitavam as limitações dele? – Eita! Mundo animal!…

    Vendo o esforço dela tentando dar comida ao pombo, lembrei-me do diálogo entre os personagens de Machado de Assis, Quincas Borba e Brás Cubas, diante da briga de dois cães por um osso nu. 

    É árduo, mas vale a pena pensar a realidade para ir além do que a retina capta. A análise do real nos faz crescer como ser humano.

    Talvez alguém venha dizer que a ação dela não foi politicamente correta, mas não menospreze o senso de caridade. Vi o esforço que fazia para ajudar o pombo aleijado e alijado. 

    Por alguns instantes, observei o movimento do bando. Percebi que nem todos os pombos tinham todos os dedos nas patas. Muitos mancavam por essa deficiência. Pelo número de mutilados, surgiu a pergunta: 

    – Por que tantos pombos sem dedos?  

    A primeira hipótese veio pela forma como se alimentam. Consomem produtos com ingredientes inadequados para eles.

    A segunda hipótese surgiu quando, ao voltar a pé para casa, passamos pela praça Paulo Carneiro, pelo lado da Rua General Osório. Perto do poste em que há uma lixeira, vi um pombo com linha de pipa emaranhada entre as patas. Não consegui tirá-la. Tentei me aproximar. Mas quando chegava perto, ele voava. As minhas tentativas para ajudá-lo foram vãs. A Marta teve mais êxito.

    Ele não conseguia andar direito. A linha estava suja e molhada. Pensei: “com os movimentos do andar, uma hora, essa linha vai se romper”. Com esse pensamento, achei que, um dia, iria livrar-se dela. 

    Como era domingo, ao chegar a casa, antes de pegar os jornais para fazer a leitura matinal e, por estar movido pela curiosidade do problema referente às patas dos pombos, fui ao Google. Encontrei o depoimento de um professor francês de Biologia no site BBC News Brasil. Segundo ele, esse problema da mutilação dos pés dos pombos é comum nos centros urbanos. E mais frequente entre aqueles que andam perto dos salões de beleza. O trabalho do referido pesquisador foi publicado em revista científica. Disse ele: 

    “Os pombos andam constantemente em busca de comida. Às vezes, ficam presos aos cabelos ou fios que estão no chão, e quanto mais andam ou movem as pernas para tentar se livrar desse desconforto, mais se enroscam.”

    “Os cabelos ou fios acabam prendendo os dedos a tal ponto que cortam a circulação. Então, ocorre uma necrose ou morte dos tecidos e o dedo cai.”

    A realidade é mestra em expor problemas sem kit de solução. Faz isso só para evidenciar as nossas limitações. Mas hoje vejo que é mais fácil proteger as patas dos pombos do que encontrar flexibilidade no sectarismo ideológico.

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