• Papo em padaria

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  • 16/10/2022 08:00
    Por Ataualpa Filho

    A crônica é desgravatada. Tem a liberdade para abordar diversos temas com a informalidade das conversas entre amigos. É assim que a vejo. Fui leitor assinante do JB quando impresso. Recortava artigos e crônicas para usar em aula. Pelo hábito da leitura, cresce a nossa afinidade com os escritores. Quanto mais aumenta o nosso interesse pela obra de um autor ou autora, mais nos sentimos íntimos. Não tratamos como “ilustríssimo senhor”, nem como “ilustríssima senhora”. Demonstramos admiração, respeito, mas não colocamos em pedestal como uma autoridade a ser referenciada solenemente.

    Às vezes, pego-me falando de Drummond, Vinícius, Clarice, Cecília, Pessoa, Guimarães, Camões como se fôssemos contemporâneos, com a familiaridade de longa convivência. Em Literatura, a distância e o tempo andam “levantados do chão”.

    Aderi à crônica por este diálogo descontraído com os leitores. Mas não tenho o dom da ficção. Não sei criar história, embora pretenda, um dia, publicar um romance.

    Não tenho habilidade para despertar o humor. Reconheço a minha incapacidade para estimular o riso. Conto, portanto, com benevolência dos leitores. Sou grato a todos que leem o que escrevo. Tento criar um vínculo de empatia, mesmo quando temos posicionamentos diferentes. Tento expressar o que penso e sinto, mas sem exercer rígido controle para não perder a espontaneidade que a verdade exige.  

    Na semana passada, chegou aos meus ouvidos uma história que poderia ser explorada em forma de conto. Relataram-me fatos pelo víeis do humor, apesar da presença do trágico:

    Disseram-me que uma viúva, movida por um sentimento nostálgico, cuidava de um pássaro preso numa gaiola. Tratava-se de uma herança deixada pelo marido, que gostava de ouvir o canto dele nas primeiras horas da manhã. Havia um zelo que lhe consumia algumas horas do dia na troca da água e na reposição do alimento. 

    Tinha o prazer de acordar mais cedo para cuidar da ave. Antes de ir para o trabalho, antes da higiene matinal, saía direto da cama para vê-lo na gaiola pendurada na área do apartamento.

    A mulher, a princípio, ficava incomodada com esse cuidado exagerado. Mas, com o tempo, assimilou bem. Já não reclamava, respeitava. Via esse hábito como hobby. Só que, um dia, o marido enfartou. Dormiu e não acordou às 06h, como de costume.

    Ela o viu, na cama, imóvel. Olhou para relógio na cabeceira: 06h30. Percebeu que algo estava errado. Tentou acordá-lo, não conseguiu. O desespero bateu forte. Ligou para o SAMU, aflita. Orientaram-na em relação aos primeiros socorros, mas tudo indiciava o óbito, que foi constatado com a chegada da ambulância.

    O casal não tinha filhos. O canto do pássaro ocupou o espaço da solidão. Ela passou a cuidar dele: acordava cedo, trocava a água, colocava a comida. Como não sabia assobiar como o marido, distraidamente conversava com o pássaro. Quando sentava na varanda nos fins de tarde, colocava-o próximo para ter companhia.

    Um dia, ela acordou para cumprir a rotina matinal. Mas só que, dessa vez, foi o pássaro que não despertou. Estava morto na gaiola. Não havia dúvida, nem remotas esperanças. Não adiantava apelar por socorro. A ave estava morta. Cumprira o seu ciclo vital. Até pensou em levá-lo a um crematório. Mas desistiu. Queria dar àquele companheiro um fim digno. Não iria jogá-lo na lixeira do prédio. Desceu com ele enrolado em um lenço. Cavou um buraco no canteiro que ficava na frente do bloco em que morava em um condomínio de classe média. Deu a ele as lágrimas da saudade com direito às lembras do marido. O enterro foi simples, rápido nas primeiras horas da manhã. Quando voltou ao apartamento, encontrou um vazio maior. A gaiola permaneceu ali pendurada com a porta aberta.

    Tomou café antes do horário habitual. Sabia que isso um dia iria acontecer, mas queria que o tempo fosse um pouco mais largo. Depois de um banho quente demorado, resolveu descer para fazer algumas compras para o almoço. Ao passar em frente do canteiro, viu o cachorro de um vizinho desenterrando o pássaro. Sentindo-se ferida, reclamou com o moço que conduzia o animal. A reação dele foi áspera. Ela recolocou o pássaro na cova.

    Esse episódio foi flagrado por um amigo que também mora no condomínio. Relatou-me enquanto tomávamos um café. Achou que os dois discutiam por motivos fúteis. Fiz algumas ponderações para que pensasse na dor da viúva. 

    Não gosto de pássaros em gaiola. Os detalhes aqui narrados foram alinhavados por minha conta e risco. Tentei trazer a realidade para ficção com o propósito de dizer que não devemos menosprezar nem julgar as dores dos outros.

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