• Os limites da democracia vs. nomocracia

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  • 04/06/2022 09:29
    Por Gastão Reis

    O que é nomocracia? Neologismo que resolvi criar para definir, numa única palavra, a contribuição inestimável do Prof. José Stelle em seu livro a ser publicado em breve. “Nomos”, em grego, significa lei; e kratos (cracia) poder. O termo enfatiza a questão fundamental da lei no sentido de “regras gerais, abstratas, aplicáveis igualmente a todos”, como nos diz Stelle, na competente companhia de filósofos que há mais de dois mil anos dissertaram sobre o tema.

    Nos dias atuais, a palavra democracia (poder do povo) adquiriu um significado sacrossanto. Filósofos como Sócrates e Aristóteles manifestavam suas reservas em relação aos desvios de rota a que ela pode nos levar. Os pais fundadores dos Estados Unidos iam na mesma linha. Inclusive nosso D. Pedro I quando afirmou “Tudo para o povo, e nada pelo povo”. A frase é muito criticada por desconhecimento do que estava por trás dela, como veremos mais adiante. (Em tempo, D. Pedro I tinha o hábito de ler duas horas por dia, o que lhe deu familiaridade com temas institucionais e constitucionais a ponto de constitucionalistas ingleses afirmarem que a Carta de 1824 foi a melhor depois da americana.

    Ao tratarmos de temas constitucionais, sempre vem à tona a figura de Sólon (século VI a.C.). Ele teve a clarividência de separar as funções normativas, assentadas na lei, das funções instrumentais, ou administrativas, limitadas por lei, no governo de Atenas. Recebeu o cognome de O Libertador por ter legado aos atenienses “leis aplicáveis igualmente a nobres e plebeus”. Aristóteles, em “A Política” já dizia: “É correto que a lei governe, e não um homem ou outro”. Mais: “Um governo, em que tudo depende do voto popular, não é a bem dizer uma democracia, pois suas determinações podem não ser gerais em sua aplicação”. Em português claro: podem beneficiar a grupos de interesse muito pouco preocupados com o bem comum. Vide Brasil de hoje.

    John Adams, único filósofo que foi presidente dos EUA, num discurso aos cadetes da academia militar de West Point, foi nada alvissareiro: “Lembrai-vos que a democracia nunca dura muito tempo. Logo ela dissipa suas energias, se esgota e se destrói. Jamais houve uma democracia que não cometeu suicídio”. Este alerta de Adams dá bem o tamanho do desafio a que estava exposta a sociedade e a democracia americanas. Ele estava preocupado com a renhida luta partidária travada desde os anos iniciais da independência.

    Será que John Adams estaria exagerando sobre a imensa dificuldade de sobrevivência da democracia como regime de governo? Não parece ser o caso. No século XX, o nazismo chegou ao poder assentado no voto popular. A lição, no caso, é que o povo alemão estava caminhando em direção ao suicídio sem se dar conta disto. Hitler, no final da guerra, teve a desfaçatez de afirmar que o povo alemão deveria perecer por não estar à altura dele (e seus delírios). Pode?

    Seria coisa do passado? Não mesmo! Basta nos lembrarmos do caso da Venezuela (entre muitos outros) em que Hugo Chávez se elegeu presidente em 1998, e governou até sua morte em 2013, recorrendo a diversos expedientes para continuar no poder após o fim do prazo legal de seus mandatos. Maduro (de podre…) continuou na mesma batida enchendo a boca de ter sido “eleito” democraticamente. É o fatídico uso da democracia para liquidá-la.

    E como fica o Brasil na foto? Não é exagero afirmar que estamos diante de uma tirania legislativa (vide os quase R$ 6 bilhões aprovados para o Fundo Eleitoral com 75% da população contra); tirania judicial (várias decisões inaceitáveis do STF, a pior talvez tenha sido a reabilitação de Lula); tirania tributária (quem ganha até dois salários mínimos paga 50 centavos de imposto em cada real gasto); e crises e problemas diversos (instituições disfuncionais, corrupção sistêmica, políticos que não nos representam, desigualdade brutal).

    O Prof. Stelle cita a famosa Ayn Rand, cujo objetivo era submeter “a força à lei”. Trata-se de um conceito de governo sob a égide do Direito, e não da vontade (volúvel) de homens. Afinal, a fonte de autoridade e legitimidade do governo é o consentimento dos governados. Na América Latina se passou por cima desse consentimento inúmeras vezes.

    Cabe agora ir mais fundo no que foi dito por D. Pedro I, que, à primeira vista, parece um “cala boca” na voz do povo. E relembrar a posição de Pedro II sobre a vontade nacional, sempre atenta aos interesses de longo prazo do povo, e a opinião dita pública, que pode ser temporária, mutável e manipulável. Cabe notar a proximidade com Kant, que, usando terminologia um pouco diferente, nos fala da vontade (transitória) do povo face à opinião do povo (duradoura e relativamente imutável, fundada na sensibilidade e na razão), que expressa moral e senso de justiça para todos, e não de grupos de interesses organizados, jogando os custos sobre a maioria do povo. Claro que situações excepcionais podem ser resolvidas, mas sem trair o que Kant denominou a opinião do povo.

    Um princípio extremamente relevante, contido na reinvenção institucional proposta por F. Hayek, é que quem taxa não gasta e quem gasta não taxa. Grandes males advêm do poder conjunto de gastar e taxar, desmazelo muito comum no Brasil e no resto da América Latina.

    Cabe ainda uma contribuição que faço sobre o papel do poder moderador na constituição do Império (1824). Ele nunca foi usado para oprimir o povo, mas sim para controlar os desmandos do andar de cima. E, nesse sentido, para que a lei prevalecesse sobre a tentação do populismo. Aquele conto do vigário em que as benesses de curto prazo se revelam a longo prazo como custos astronômicos para a população. Voto distrital puro e bônus por desempenho nas obras públicas seriam, a meu ver, dois complementos indispensáveis

    O termo nomocracia traz em si um alerta sobre o lado negro da democracia, ou seja, contra a velha demagogia. E ainda capta bem o espírito da valiosa contribuição que o Prof. José Stelle nos oferece sob o título “Por uma Nova Carta: Mensagem à Nação Brasileira”.

    Nota (*): Vídeo do autor, “Democracia dá trabalho”, no DOIS MINUTOS COM GASTÃO REIS. Ainda atual., Basta clicar no link abaixo para assistir: https://www.youtube.com/watch?v=HWsAgLzLsXE&t=6s

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