• Os invisíveis

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  • 10/05/2020 00:01

    As palavras são fascinantes. Carregam a energia dos sentimentos humanos. Desde a infância, sou atraído por elas. Nas séries primárias, eu era fascinado pela sonoridade. Gostava de pronunciar “Constantinopla”, “Mesopotâmia”, “transatlântico”…

     

    Nessa brincadeira de conhecer novos vocábulos, deparei-me com “anticonstitucionalissimamente”. Falava para os colegas que essa era a maior palavra da Língua Portuguesa, embora não soubesse o significado. Para mim, era uma centopeia de sílabas. Não conhecia pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiótico.  O “é”, ainda o vejo como o menor vocábulo com mais densidade e consistência. Assumir o “ser” não é tão simples.

    Hoje sobrevivo como um operário da linguagem. Nunca passou pela minha cabeça a audácia de querer dominá-la. De Saussure a Bakhtin, é uma longa caminhada, porém ainda temos muito que aprender com o que a linguagem reflete do comportamento de uma sociedade. Nesse período de quarentena, que já vai para “cinquentena”, podemos identificar a adequação linguística ao momento vivido e às influências culturais, até mesmo ideológicas. 

    A palavra “pandemia” perdeu o cheiro de naftalina, mas está sendo empregada como eufemismo de “peste” e provocando ciúmes, pois “epidemia” vem caindo na popularidade dos telejornais. “Delivery” tem substituído a expressão “em domicílio”. “Home office” também já se incorporou ao vocabulário usual para designar o ato de “trabalhar em casa”. É o anglicismo viril que “viralizou” alguns termos na carona do novo coronavírus. A “vibe” viral também ocorre na linguagem.

    Nesse período em que as expressões “isolamento social” e “distanciamento social” estão sendo usadas como sinônimas, a palavra “live” passou a ser bem ventilada. Não vai demorar muito para surgir o verbo “livear”. Muitos estão “liveando” como entretenimento. Digo isso, porque vi, pelas redes sociais, um vídeo em que um jovem perguntava para o colega:

             – Cara, tu tá coronado?

             – Que nada! Foi só uma gripezinha…

    O sufixo da palavra “gripezinha” foi usado para subestimar a gravidade do problema. O vírus causador da doença chamada de “gripezinha” já matou mais 250 mil pessoas no mundo. É bom lembrar que, para a “Covid-19”, doença provocada pelo citado vírus, ainda não há uma vacina, nem remédio cientificamente comprovado para combatê-la. Portanto, a melhor solução está em seguir as orientações dos profissionais da área de saúde que não cansam de enfatizar a importância dos hábitos de higiene, por isso que as expressões “lavar as mãos” e “ficar em casa” lideram as pesquisas.

    O termo “vírus da China” sofreu severas críticas, porque tem conotação pejorativa, além de externar preconceitos e discriminações inaceitáveis, comuns no “trumpismo”. Não existe muro para os vírus, todos são imigrantes e não respeitam fronteiras.

    “Lockdown” é a palavra que agora entrou em cena com o objetivo de evitar o “colapso dos hospitais”, que podem não ter “respiradores” suficientes para todos os doentes internados em estado grave. No colapso da saúde, gira a roleta da “Escolha de Sofia”: quem é do grupo de risco vai na frente. Talvez esse seja o preço que estamos pagando por ter votado em candidatos não cândidos. O destino também tem as suas ironias:  nesse caso, “testar positivo” é negativo.

    No retorno à rotina, com o fim dos “confinamentos”, o uso de máscaras é imprescindível. Será peça integrante ao vestuário com tamanhos definidos em “P”, “M”, “G” e “GG”, porque devem ser usadas por todos: crianças, adolescentes e adultos. As mulheres irão economizar o batom, porque a boca e o nariz devem ficar cobertos. Os homens que cultivam belas barbas terão dificuldades de manter o hábito de pensar enrolando os fios do bigode. E os fumantes terão mais um incômodo.

    Mas o “epicentro” dessa prosa está no adjetivo “invisíveis” que foi atribuído a mais de 20 milhões de cidadãos que não recebem nenhum tipo de auxílio da “máquina do Estado”. Esses brasileiros estão sofrendo nas filas da Caixa para receber uma ajuda de R$ 600,00. Muitos deles nunca tiveram uma carteira assinada, não estão cadastrados no Bolsa Família. A pandemia fez emergir a “subnotificação” da miséria. Não são “portadores assintomáticos” da indigência social: – como mais de 20 milhões de pessoas podem ser consideradas “invisíveis” para uma Nação? Até quanto o Brasil vai desconhecer o Brasil?

    – Ouça “Querelas do Brasil” na voz de Elis Regina que você encontrará o verso do saudoso compositor Aldir Blanc, vítima da Covid-19, que retrata bem o momento vivido: “Do Brasil, SOS ao Brasil”.

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