Ópera mistura fábula, sátira, absurdo e cultura popular
O primeiro-ministro Leandro e a princesa Clarisse, sobrinha do rei, tramam em cena: é preciso evitar que o príncipe assuma o trono. Sim, ele é hipocondríaco, atormentado por uma tristeza atroz. Mas e se sobreviver ao rei? Leandro resolve envenená-lo. E qual veneno usar? Um pouco de prosa trágica. Ou, então, quem sabe, um punhado de versos – não qualquer verso, e sim os chamados de “martelo”, compostos de dez sílabas. Basta passá-los no pão; ou picá-los em sua sopa.
É com esse tom de sátira, muitas vezes associada ao absurdo que O Amor das Três Laranjas sobe ao palco do Teatro Municipal de São Paulo. Criada por Sergei Prokofiev em 1919, a ópera será dirigida pelo ator Luiz Carlos Vasconcelos, criador do Circo Piolin, e pelo maestro Roberto Minczuk, à frente da Orquestra Sinfônica Municipal e do Coro Lírico.
“Fiquei totalmente arriado com a genialidade de Prokofiev”, conta Vasconcelos. “Logo no primeiro encontro com toda a equipe, eu disse: Prokofiev espera algo de nós. E trabalhamos sempre dialogando com esse objetivo”, diz.
É um diálogo com muitos personagens. A origem de O Amor das Três Laranjas remonta ao século 17, quando Giambattista Basile recolheu do folclore napolitano a fábula de um rei que escala artistas para curar a tristeza de seu filho – ao mesmo tempo que a corte trama para evitar sua chegada ao poder. Um século depois, Carlo Gozzi reinventou a história, dando a ela caráter de sátira às convenções do teatro trágico de sua época. No início do século 20, o dramaturgo Vsevolod Meyerhold traduziu a peça para o russo e a entregou para Prokofiev. O compositor, então, adicionou mais ironia e sarcasmo à mistura e a traduziu para o francês, ajudado por uma querida amiga, a soprano brasileira Vera Janacopulos.
“O meu processo de criação passa em especial pelo Meyerhold, muito ligado à cultura popular russa”, lembra Vasconcelos. “E por aí que essa ironia sobre o teatro e a ópera se conecta com o meu mundo, aquilo que determina meu olhar como indivíduo e artista, que é a relação com a cultura popular do Nordeste. O enredo da ópera é uma historinha popular, que aproximo das minhas verdades cênicas, passando pelo Meyerhold e pela maneira como Prokofiev coloca ainda mais ironia no texto.”
PALAVRA CANTADA
Esse não é o primeiro trabalho do diretor com ópera. Em 2003, ele esteve à frente de Portinari, apresentada no Sesc Ipiranga. E, em 2009, dirigiu a estreia mundial de Dulcineia e Trancoso, de Eli-Eri Moura, com libreto de W. S. Solha inspirado em Ariano Suassuna. Nos dois casos, tratavam-se de novas obras, ao contrário da peça de Prokofiev, estreada há um século.
“O fato de já haver uma série de referências do passado no caso de uma ópera de repertório não foi para mim uma questão. Acho mais interessante pensar que em todas elas há o elemento do canto, da palavra cantada. É um território que, por isso mesmo, não é naturalista por definição”, explica.
Intérprete do príncipe, o tenor Giovanni Tristacci chama atenção justamente para o trabalho que a produção desenvolve a partir de símbolos. “A narrativa em si está bem colocada no espetáculo, mas há uma preocupação em dar espaço para o humor cínico de Prokofiev e para um trabalho com símbolos, como a coroa, o trono.”
Para ele, o caráter de farsa é fundamental no enredo. “O príncipe é essa figura hipocondríaca, triste, de certa forma depressiva, mas há algo de caricato nele. Não dá para levar tudo o que ele diz ao pé da letra. E isso vale para a música também. Ela possui muitas camadas, às vezes dando caráter irônico para o que no texto parece sério, por exemplo.”
EXPRESSÕES
Um time de cantores brasileiros sobe ao palco do Municipal na montagem. Além de Tristacci, como o príncipe, participam, entre outros Leonardo Neiva (Leandro), Lidia Schäffer (Clarisse), Jean William (Trufaldino), Johnny França (Pantaleão), Maria Sole Gallevi (Ninete), Anderson Barbosa (Mago Célio), Nathalia Serrano (Linete) e Gustavo Lassen (Cozinheira).
Como a Fada Morgana, a soprano Gabriella Pacce retorna ao universo cômico após uma série de óperas dramáticas – a mais recente delas, Domitila, papel-título da obra do compositor João Guilherme Ripper apresentada em setembro nos teatros municipais do Rio de Janeiro e de São Paulo.
“Eu amo fazer comédias, é sempre um repertório que carrega o imprevisível e obriga a sair da zona de conforto”, ela observa. “Neste caso, a Fada é de certa forma a má da história, a vilã, mas há nela uma colisão de expressões, entre o cômico e o trágico, que é interessante.”
Gabriella conta como foi o processo de criação ao lado do diretor Luiz Carlos Vasconcelos. “Foi um trabalho feito em conjunto. Ele dá muita importância àquilo que o rodeia, com muita atenção para o trabalho de direção de arte, por exemplo. Os figurinos também são muito interessantes e os personagens se criaram também a partir deles. Há muitos elementos, como a presença do circo, e o resultado é que dessa mistura nasce um espetáculo com muitas camadas.”
O Amor das Três Laranjas
Teatro Municipal de São Paulo.
Pça. Ramos de Azevedo, s/nº.
Sáb. (1º) e dia 8, às 17h;
dias 4, 5 e 7, às 20h.
R$ 10 a R$ 120.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.