• Onde ficou o coração e o cérebro do 7 de setembro?

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  • 04/09/2022 11:38
    Por Gastão Reis

    Nos meses que antecederam o plebiscito de 1993, sobre formas de governo (monarquia ou república) e sistemas de governo (parlamentarismo ou presiden-cialismo), antecipado por razões políticas suspeitas, de 7 de setembro para 21 de abril, eu participei de inúmeros debates em defesa do parlamentarismo com monarquia. Um monarca como Chefe de Estado, preparado desde a infância para o cargo, e por razões de ordem hereditária sem dever favores pela posição que ocupa a grupos econômicos ou a partidos políticos, tendo visão de longo prazo para perpetuar a dinastia e ainda acumular a virtude da aderência de seu interesse pessoal ao público, vale dizer, bem comum, me parecia a figura ideal para ser um fiscal da defesa e da preservação do interesse público.

    Eu cheguei a esta conclusão ao me dar conta de que um presidente eleito num regime parlamentarista republicano jamais teria condições de preencher tais requisitos. Como o monarca, ele também teria um Primeiro-Ministro, como ocorre nas monarquias parlamentares, que cuidaria da administração pública no dia a dia. Mas sua eleição sempre deveria favores a grupos econômicos e políticos que financiaram sua campanha. Impossível seu grau de isenção ser o mesmo de um monarca. Seria sempre marcado por certo grau de conivência com os referidos grupos. É sintomático que um Primeiro-Ministro inglês tenha dito que se preparava muito melhor para sua reunião semanal com a rainha do que para a das quartas-feiras diante do Parlamento.

    Essa dupla fiscalização semanal (não é mensal, nem trimestral!) dos atos de governo evidencia a grande desconfiança que o inglês médio tem do poder, como nos assegura Alan Ryan em seu magistral “On Politics” (“Da Política”). A patologia do caso brasileiro foi que abrimos mão desse mecanismo de controle efetivo do poder, com o fatídico golpe militar de 1889, embarcando na canoa furada do presidencialismo, que tantos dissabores (e roubalheira) trouxe aos povos latino-americanos. Militares como o ex-ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, disse, em entrevista ao Bial, que o Brasil estaria em outro patamar se houvesse preservado a monarquia, reconhecem o desastre de 1889.

    Outra interpretação dessa visão vinda de um militar qualificado como ele nos permite inferir que o exercício do poder moderador pelo exército, a longo prazo, trabalhou contra a instituição por duas razões. A primeira foi que deixaram de ter uma aliada natural, a monarquia, contra os desmandos das oligarquias, como ressaltou Joaquim Nabuco. A segunda é que eles se meteram a atuar em áreas que lhe são estranhas como economia e política. Historica-mente, o custo para a instituição foi imenso, pois o saldo foi muito negativo. O veredito de Roberto Campos, dentre outros de alto calibre intelectual, foi este.

    Vejamos agora a questão do título sobre onde ficou o coração do 7 de Setembro. O grito de “Independência ou morte!” dá bem a medida da carga emocional de que estava tomado Dom Pedro I. Afinal, ele estava se desligando de sua pátria de origem, Portugal. E certamente dando guarida aos conselhos de José Bonifácio e da própria Imperatriz Leopoldina face às ordens absurdas das Cortes portuguesas em direção a perdermos o status de reino. Ou seja, voltarmos a ser colônia. E ainda de seu próprio pai, Dom João VI, que lhe disse que, mais cedo ou tarde, o Brasil se separaria de Portugal, aconselhando-o a lançar mão da Coroa antes que algum aventureiro o fizesse.

    Não, caro(a) leitor(a), não foi um mero negócio em família, como certos analistas veem a questão. O hábito de ler duas horas por dia de Dom Pedro I, que incluía textos sobre questões político-institucionais, o habilitaram a ter um pé atrás em relação ao populismo. É muito significativo que ele tenha recusado o título de protetor do Brasil e só ter aceito o de defensor. (El Protector se tornou um título muito popular em ditaduras latino-americanas.) Até mesmo, quando afirmou “Tudo para o Povo e nada pelo Povo”, ele estava se acautelando contra o populismo. Esta interpretação heterodoxa sobre esta frase de Pedro I tem a ver com sua opção a favor de submeter não só o próprio poder real à Lei.

    É fato que o poder moderador dava amplos poderes ao monarca. Mas também é fato que não foi usado contra o povo, mas a seu favor. Em nossa tradição política, falamos normalmente em três poderes, executivo, legislativo e judiciário, enquanto o mundo funciona com quatro, que inclui a Chefia de Estado, um poder independente e fiscalizador, e que atua quando os outros entram em conflito. Os países bem resolvidos politicamente dispõem de quatro poderes, justamente por não acreditarem em poderes harmônicos e indepen-dentes, uma contradição em termos, segundo o ex-deputado Cunha Bueno.

    A verdade é que o coração de Dom Pedro I, temporariamente entre nós, estava em linha com seu cérebro ao obstar a entrada em cena do populismo. Este faz uso do arbítrio e da própria Lei em benefício de determinados grupos. A prova contundente são as pesquisas que apontam para o descrédito junto à população dos poderes e das instituições da república em que prevalecem a corrupção sistêmica, a desigualdade e políticos que não nos representam. Roberto Campos dizia que a lógica econômica havia entrado de férias na Carta de 1988. As medíocres quatro últimas décadas o comprovam. E nos autorizam a questionar se o cérebro de nossos dirigentes está funcionando a contento. Certamente não a favor do interesse público, fato percebido pela população.

    Se, por lado, Blaise Pascal nos diz que “o coração tem razões que a própria razão (o cérebro) desconhece”, isso não nos dá sinal verde para tomar tantas iniciativas que o cérebro desaconselharia porque não funcionam a longo prazo. É fato que a emoção (o coração) é um ingrediente indispensável para o bom funcionamento da razão (cérebro), segundo pesquisas mais recentes. A simbiose entre o coração e o cérebro, na medida certa, é o caminho a seguir. Se o coração de Dom Pedro I vai regressar em breve para Portugal, ele nos deixou exemplo de como usar o cérebro a nosso favor contra o populismo que nos sufoca hoje. Mãos à obra!

    (*)Nota: Link para uma live minha, “Construção, Desconstrução e Reconstrução da Autoestima Nacional”: https://youtu.be/fdeYAFRGqkI, que nos redireciona.

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