Olha o gás Ataualpa A. P. Filho Escritor
Um fato temos que admitir: o funk é democrático, toca em qualquer camada social. Além de não estabelecer nenhum padrão de qualidade. Qualquer frase que se encaixar no “batidão” e for massificada faz sucesso. “Viralizar” é o verbo do momento. Coloca-se um vídeo nas redes sociais, para que se alastre como fogo em pólvora. A certeza que nos conforta é que essas viralizações são efêmeras.
Nesse carnaval que passou, um dos “hits” que “bombou” tem como letra a frase que ouvimos quando o caminhão do vendedor de gás passa na rua do bairro e anuncia: “ó o gás”. A música é introduzida pelo toque de um sino que começa lentamente, depois vai progressivamente acelerando. E, de repente, o Mc dá um grito: “ó o gás!”
Não questiono aqui a qualidade poética da letra, nem o gosto popular. Apenas quero registrar e constatar uma realidade que deve ser analisada pelos critérios exigidos pelo bom senso.
Confesso que não fiquei tão preocupado quando vi as crianças, na escola em que trabalho, com os braços levantados, balançando-os ora para esquerda, ora para a direita, no ritmo do sino, depois acelerando com o grito do Mc: “ó o gás”.
Se essas crianças tivessem cantando a versão original da música “Deu Onda”, que também vem sendo tocada nos carros que não respeitam a lei do silêncio, eu estaria mais preocupado, pois a letra original não dá para ouvir em ambiente familiar. O autor teve que fazer uma versão “light” para poder tocar nas rádios.
É valido ressaltar que essas músicas e outros “hits” do mesmo quilate têm por trás uma produtora, responsável pela viralização, na expressão literal do termo.
Diante de tais produtos, com esse padrão de qualidade, com fortunas e ostentações que circulam nesse mercado, penso na situação da Orquestra Sinfônica Brasileira, que precisa de doações para viabilizar projetos artísticos e educacionais. Para fazer parte de uma orquestra como essa, é preciso ter uma formação musical aprofundada, algo que o funk não exige e nem se propõe a isso. Temos também que nos preocupar com a qualidade da música que ouvimos.
Esse carnaval que passou também ficará marcado pela polêmica do “politicamente correto” que tachou de preconceituosa letras de música como “O Teu cabelo não nega” de Lamartine Babo e de homofóbicas músicas como “Cabeleira do Zezé” de Roberto Faissal e João Roberto Kelly e “Maria Sapatão” do Chacrinha.
Nesta época de pós-verdade, é fundamental analisar a intencionalidade do discurso. As marchinhas citadas, que já fazem parte do repertório do carnaval brasileiro, continuarão sendo cantadas pelos salões nas festas de mono, porque o povo não só as assimilou, como também não identificou a conotação preconceituosa que hoje são evidenciadas em suas letras.
Conheço várias pessoas que militam em defesa dos animais e que cantaram, quando criança, “Atirei o pau no gato”. Isso mostra que não foram influenciadas pela canção. É evidente que a letra da música narra um ato perverso. Mas ninguém maltrata um animal por tê-la cantado na infância. Não há essa intencionalidade.
O racismo, a homofobia, os maus tratos aos animais vêm por um outro caminho, estão mais enraizados na tradição familiar, na educação dada às crianças. A influência do cancioneiro popular na consolidação dos preconceitos é insignificante. O modelo de valores que a sociedade propaga e exalta pelos meios de comunicação, o comportamento dos pais, educadores e ídolos influenciam muito mais do que as canções. Acho “Big Brother” mais nocivo à sociedade do que a música “Atirei o pau no gato”.