• Obra mostra registros históricos da ditadura em Petrópolis

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  • 07/03/2019 10:46

    O Brasil conhece Petrópolis por sua rica história dos tempos do Império, de seus belos casarões e sua natureza exuberante. No entanto, dois anos de pesquisa de um grupo de petropolitanos jogou luz sobre um lado obscuro da cidade, que poucos conheciam: uma Cidade Imperial que se transformou em um dos centros de tortura durante os 20 anos de Regime Militar. Um exaustivo trabalho de pesquisa da Comissão Municipal da Verdade foi transformado em livro, no fim de 2018, expondo um lado vergonhoso do encantador município.

    Com 399 páginas, o livro é a compilação de um trabalho investigativo que durou dois anos. Durante esse período, foram centenas de entrevistas com personagens que viveram o drama de crimes contra a humanidade praticados na época em que a Ditadura Militar, tomou conta do destino da nação. A obra traz informações dolorosas, como as que envolvem a existência da chamada “Casa da Morte” localizada na rua Arthur Barbosa, número 50, no bairro Caxambu e que outrora fora identificada pelas forças de repressão como “Codão”.

    Havia muita especulação e boatos em torno da “Casa da Morte”, sem terem nunca comprovado a sua existência. Em um dramático relato de Inês Etienne Romeu, militante da Política Operária (Polop), da Vanguarda Popular Revolucionária (Var-Palmares), dada à OAB, o país conheceu detalhes do que apenas se suspeitava. Falando à OAB, Inês revelou ter sido “presa no dia 5 de maio de 1971 por agentes comandados pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury”, quando estava em São Paulo. Após sua prisão na Avenida Santo Amaro, em São Paulo, foi levada ao DEOPS, onde foi interrogada. Ela veio para o Rio e, em seguida, para Petrópolis.

    A “Casa da Morte” começou a ser descortinada para valer no final da década de 70, quando Maria Inês – a única sobrevivente às sessões de tortura praticadas no local -, quando relatou ao Conselho Federal da OAB tudo que passou naqueles dias dolorosos que marcaram sua vida. Em um dos seus tristes relatos, lembrou do proprietário do imóvel, Mário Lodders, quando ficou durante três meses no local. Lodders foi um ativo colaborador do Regime Militar, sendo um dos petropolitanos acusados de terem colaborado com os crimes, que, de acordo com a convenção internacional que trata do tema, não são prescritíveis aos olhos da lei.

    A Comissão Municipal da Verdade, formada por Eduardo Navarro Stotz (professor e historiador), João Carlos Fabre dos Reis (advogado e sindicalista), Gluber de Oliveira Montes (historiador e professor), Maria Helena Arrochellas (teóloga), Rafane Valoura Paixão (historiadora) e Roberto Carlos Schiffler Neto (historiador, cientista social e professor) não se ateve apenas aos casos relatados na “Casa da Morte”, mas uma compilação que mostra a luta de sindicalistas e dos partidos de esquerda na oposição ao governo comandado por militares. As barbáries praticadas em Petrópolis e em todos os cantos da nação não tiveram um julgamento por conta da anistia dada pelos militares que ainda estavam no poder, tendo ocorrido na gestão do general João Batista de Figueiredo, nos anos 80. O Brasil, ao contrário de seus vizinhos, foi o único que não levou os responsáveis a juízo.

    O servidor público, Enivaldo Gonçalves (à esquerda), foi uma das vítimas

    “A Comissão nasceu de uma demanda da sociedade de investigar os crimes praticados no município, que incluem principalmente a ´Casa da Morte´. Quando em 2014 se recordou os 50 anos do golpe militar, um grupo de pessoas e coletivos de esquerda lançou a proposta de pesquisar sobre aqueles tempos sombrios em Petrópolis. Montou-se o comitê ´Petrópolis em Luta” que deu início a um projeto para criar uma Comissão da Verdade local”, assinalou Roberto Schiffler, que participou de todo o processo até a materialização de um trabalho no livro, lançado no ano passado em que resume, com detalhes, o resultado da pesquisa.

    A Comissão foi criada em meados de 2014, na esteira de outras criadas pelo país afora para apurar os excessos dos militares. No ano seguinte, foi regulamentada pelo ex-prefeito Rubens Bomtempo e, a partir de abril, um grupo de petropolitanos se reuniu para dar início aos trabalhos. Além de todo o levantamento de dados, o grupo organizou uma série de palestras, audiências públicas e até jornadas em clubes e colégios, dando detalhes sobre o período conturbado da história após o golpe dado contra o ex-presidente João Goulart, em 1964. Oficialmente, as tarefas começaram em janeiro de 2016 e só concluído, em um relatório final, em dezembro do ano passado.

    Durante os dois anos de apuração dos fatos, a Comissão Municipal foi atrás também de registros nas polícias militar e civil, biblioteca municipal, além dos jornais diários da época. O que foi descoberto era parecido com um roteiro de filme de terror, dados os relatos ouvidos de vítimas como dos familiares que tiveram parentes desaparecidos na pomposa Cidade Imperial. Como se isso tudo não bastasse, o relatório final aponta nomes de comissários de polícia e até jornalistas que, infiltrados na imprensa, deram informações preciosas para capturar os supostos inimigos do regime. Entre os que morreram graças à colaboração deles, vários petropolitanos.


    O livro que se transformou no relatório final da Comissão Municipal está à disposição do público

    De acordo com Roberto Schiffler, o livro é um importante legado para a atual e futuras gerações que vão descobrir pontos importantes sobre o período da história política brasileira. Apesar de considerar que o atual momento vivido no país nos remete à ditadura – o atual presidente homenageou torturadores que agiram no regime militar –, o historiador ressaltou o exemplar como uma fonte preciosa de informação histórica. “Para construir um futuro diferente, é preciso ter um olhar para o passado e o presente. Pois o país que não conhece sua história, está fadado a repeti-la em algum momento. A obra está à disposição dos petropolitanos saberem como foram as atividades durante décadas pelos apoiadores do golpe militar”, finalizou ele.


    Professor de tortura visitou Petrópolis

    A participação americana no golpe militar no Brasil (1964/1985) foi um dos temas que mais chamaram a atenção da Comissão Municipal da Verdade. E como se não bastasse a famosa agência de espionagem ter enviado um representante especializado em tortura no Brasil, Daniel Anthony Mitrione esteve em Petrópolis entre 1964 e 1969 e foi homenageado por políticos locais com um nome de rua.

    O assunto foi amplamente debatido pelos membros da Comissão da Verdade em uma audiência pública realizada no Cefet. Quem jogou uma luz na presença do norte-americano no município foi o historiador Diego Grossi, que apurou com fontes que ele encontrou-se com autoridades para provavelmente explicar como se retirava alguma declaração dos presos.

    Depois de trabalhar com policiais mineiros, Dan Mitrione veio para o Rio de Janeiro e depois Petrópolis, uma etapa crucial para os planos da Ditadura Militar calar os opositores do regime. Do aprendizado do americano, várias técnicas foram empregadas contra opositores como o famoso “pau de arara” e métodos de afogamento que certamente vitimaram muitos, e que quando sobreviviam, deixavam marcas psicológicas. Felizes com a atuação do agente, petropolitanos ousaram na bizarrice, ao homenageá-lo com um nome de rua. O logradouro, situado na avenida Barão do Rio Branco, chamou-se rua Dan Mitrione, mas o nome foi substituído, já na fase da democracia, para José Vasco. A Comissão da Verdade assinalou que sua contribuição causou mortes e dores a pessoas e familiares.

    Em 1969, Mitrione foi para o Uruguai onde continuou suas atividades em treinamento de tortura disfarçado de encarregado de negócios na embaixada americana. E ganhou o título de “El Maestro de La Tortura”, do jornal O Clarin, da Argentina. No entanto, sua atuação na América do Sul teve um fim no ano seguinte, quando foi morto pelo grupo revolucionário marxista-leninista uruguaio Tupamaros, no dia 10 de agosto.

    Por seus serviços prestados pela CIA no continente sul-americano, o ex-Presidente dos EUA, Richard Nixon enviou seu genro, David Eisenhower e seu secretário de estado, William Rogers para um funeral com pompas. Inclusive, Frank Sinatra e Jerry Lewis organizaram um espetáculo para a família Mitrione em Richmond, Indiana. Ele era casado e pai de nove filhos. 



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