O umbigo (de cada um) roubou a cena
Deparei-me na terça-feira, 14.6.2022, em O Globo, na primeira página do Caderno Economia, com uma foto do plenário do senado. Pena que não possa reproduzi-la aqui. Mas dá para descrever e comentar. Ela foi tirada por trás do orador que “falava” (mais adiante as aspas se explicarão) a seus pares. Pegava um pedaço da mesa diretora da Casa e ainda os senadores no plenário.
O quadro geral retratava o completo desrespeito ao senador que fazia uso da palavra. É possível observar um plenário esvaziado; e, pior, dos presentes, a maior parte com o ouvido colado no celular; os demais falavam em grupos pequenos sem dar a mínima ao colega que falava para as paredes. Quem estava na mesa diretora olhava em outra direção que não era a do senador que estava na tribuna. Suas palavras acabariam nos anais do senado sem jamais atingir a quem se destinavam. Quadro patético!
Foi então que me lembrei da saudável providência tomada pela câmara e senado dos EUA que obriga deputados e senadores a deixarem seus celulares na antessala do plenário. Preferiram evitar a tentação de alguns, ou muitos, o usarem e deixar o colega sem público ouvinte como ocorre no Brasil. Seria apenas uma cena casual que não refletiria o que se passa normalmente? Não é. Observe as tomadas pelas TVs do plenário das duas casas. O amplo, geral e irrestrito desrespeito a quem fala dá sempre as caras.
Que lições podemos tirar dessa situação em que os atores (políticos, no caso) parecem não se darem conta do que está acontecendo? Virou rotina. Provavelmente, o próprio senador que falava se comporta do mesmo modo quando está no plenário fora da tribuna.
A primeira delas é que o umbigo de cada um assumiu o comando do triste espetáculo. O ideal secreto (inconfessável abertamente, claro!) é que cada um tivesse seu partido: o EuSozinho & Cia. Ausente. É claro que politicamente, num parlamento, isso não funciona, o que não impede de ser um sonho tresloucado. O simples fato de ter surgido a proposta da federação partidária deixa claro que a fragmentação partidária, com 25 partidos com representação na Câmara Federal, foi muito além do que deveria. O processo legislativo se tornou lerdo e contraproducente. Cabe a nós pagar a conta da ineficiência.
Um segundo resultado maléfico ao País é que as demandas políticas, cada vez mais, atendem a grupos de interesse em que não sobrou espaço para o interesse público. Um bom exemplo é o nosso manicômio tributário, nas palavras precisas do economista Paulo Rabello de Castro. Mesmo para os especialistas, está muito difícil acompanhar o ritmo da esquizofrenia tributária brasileira, sempre a parir novas e complexas mudanças diárias
A surdez parlamentar não consegue nem mesmo ouvir os gritos da evidência empírica em matéria tributária. Sem dúvida que o agronegócio tem uma bancada de mais de 200 deputados sempre alertas em suas reuniões semanais. Mas não há como negar que uma carga tributária de apenas 6% pesa a favor do agronegócio, cujo desempenho é espetacular. E estrangula a indústria de transformação com 47%, devidamente comprovados por estudos técnicos bem fundamentados. Só agora reduzida pelo ministério da Economia.
O cenário de um plenário que não ouve quem fala é também muito representativo do que seria a voz do Povo se ele pudesse ocupar a tribuna. A prova mais evidente é que a confiança da população no congresso e nos partidos políticos oscila em algo em torno de 5%. Ou seja, apenas um brasileiro em vinte confia muito em seus representantes, segundo pesquisa do Datafolha.
A dita solidez das instituições é para inglês ver. Um quadro de tão pouca confiança nos poderes e nas instituições, revelada inclusive em pesquisas semelhantes, aponta muito mais em direção à nossa fragilidade institucional. Um país sem voto distrital puro, ou equivalente, e que não dispõe do recall (possibilidade de revogação de mandatos pelos eleitores) impede que o poder real esteja nas mãos do eleitor.
Que fazer, eis a questão?
Foi então que me lembrei de Edward de Bono, autor do livro “Pensamento Lateral”, que foi convidado a intermediar as reuniões entre brancos e negros, na África do Sul, no período turbulento de transição do poder através de seus 6 chapéus pensantes. Ele nos alerta do risco de continuar a cavar mais fundo no mesmo buraco ao invés de cavar em outro local em busca do ouro desejado. No nosso caso, um arcabouço político-institucional que faça sentido e nos garanta dispor de novas práticas políticas capazes de preservar o bem comum.
Djamila Ribeiro, no livro “Lugar de Fala”, coordenado por ela, nos fala da exclusão social da voz negra, em especial das mulheres, impedidas de vocalizar sua situação de vida a partir da visão de quem sofre a opressão no dia a dia. Cabe aqui relembrar o depoimento de intelectuais estrangeiros que passaram pelo Brasil e tiveram a oportunidade de assistir sessões do Parlamento do Império. As avaliações eram sempre muito positivas pela vitalidade do debate parlamentar e a ampla liberdade de imprensa de que o País gozava, que não era comum em países europeus da época. Havia vozes, inclusive negras, que a censura emudeceu, no novo regime “republicano”, como se queixava o escritor Humberto de Campos, membro da ABL, no início do século XX.
É legítimo expressar nossa indignação sobre o nível de degradação a que chegou a vida parlamentar brasileira nos últimos tempos. O lugar de fala, em que muitos intelectuais negros tiveram voz na imprensa, na segunda metade do século XIX, parece ter desaparecido do parlamento republicano brasileiro de nossos dias. A gravidade do quadro não é simplesmente o silenciamento da voz negra, mas do próprio Povo Brasileiro, convocado a pagar o dobro da conta das campanhas eleitorais em 2022 para continuar, por exemplo, a ser o grande mudo sem representantes à altura na defesa do interesse público.
O que há de positivo em situações como a que o Brasil vive hoje é que as lições da História nos ensinam que mudanças em profundidade costumam ocorrer para corrigir situações escabrosas como a nossa. Que assim seja!
Nota (*): Meu livro, HISTÓRIA DA AUTOESTIMA NACIONAL, já está disponível, no Rio, na Livraria Galáxia, na Rua México, 31; e, em Petrópolis, na Nobel da Rua 16 de Março. Dica: comece lendo o livro pela contracapa.