• O último café da garrafa

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  • 23/mar 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Sei que a gastronomia é uma arte. Mas não me considero com habilidades para praticá-la. Contudo, admiro o talento de quem a tem com esmero. Reconheço a minha inabilidade para atuar em uma cozinha. Porém nunca tratei um prato de comida com desprezo. Confesso o pecado da gula. Enquadro-me na categoria “bom garfo”. E respeito muito os alimentos.

    Conheço a fome de perto. Segundo a sabedoria popular, ela é o melhor tempero. E quem vive no sertão sabe também o valor de um copo d’água. Um prato de comida, um copo d’água não são artigos de luxo, são imprescindíveis à existência dos viventes humanos.

    Quando se fala do aumento dos preços dos alimentos, dos altos índices da inflação, tem-se em mente as dificuldades que um pai trabalhador encontra para colocar o alimento na mesa da família.

    A fome fere a alma. Um pai, uma mãe sem alimento para dar aos filhos sentem-se torturados. A insensibilidade social é agressiva, desumana. Quando me deparo com as políticas assistencialistas pautadas em auxílios financeiros sem criação de emprego, sem qualificação de mão de obra, lembro os versos da canção “Vozes da Seca” de Luiz Gonzaga e Zé Dantas: “Mas doutô, uma esmola a um homem que é são/ ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão.”

    Quem carrega, no peito, fé no Criador, aceita os desígnios expostos nas escrituras: “comerás o pão com o suor do teu rosto, até voltares à terra donde foste tirado. Pois é pó e ao pó hás de voltar.” (Gn 3,19)

    Já está inserido no senso comum que o trabalho enobrece. É com trabalho que se constrói a dignidade. E pelo trabalho, tem-se noção do custo de vida. A queda do poder aquisitivo, em qualquer sistema de governo, cria restrições, os obstáculos são ampliados, comprometendo a qualidade de vida. Qualquer trabalhador sente isso na própria pele, na queda do poder de compra: o salário é corroído. Os produtos que ele antes conseguia comprar com o salário, após aumentos inflacionários, não consegue mais.  É preciso que se reconheça o heroísmo das donas de casa na luta para superar a carestia.

    A proposta deste texto surgiu na terça-feira passada (18/03), depois do que ouvi de uma experiente senhora, funcionária de uma escola em que leciono. Ela se aproximou da mesa em que eu estava, por volta das 19:00 horas, com uma xícara de café cheia:

    – Professor, esse é o café que tava na garrafa. Não posso jogar fora. Café tá caro. É um desperdício jogar fora. As professoras que estão aqui hoje não bebem mais café por essas horas da noite. Eu tenho que lavar a garrafa pra amanhã cedo usar…

    Já havia tomado uma boa dose, em torno de uns quarenta minutos antes dela colocar a xícara na mesa em que eu trabalhava. Olhei para ela e pensei: “com essa cafeína toda, a minha insônia ficará turbinada”. Mas os argumentos dela me convenceram.

    – Deixe aqui que vou tomar. Por favor, só me traga um copo d’água. Deixe a xícara aqui que vou bebendo aos poucos…

    Não foi nenhum sacrifício. O cafezinho que ela faz, há mais de trinta e cinco anos de trabalho nessa instituição de ensino, é ótimo, tem sabor carinho.  Ainda estava quentinho, desceu rápido. Como já esperava, a insônia veio. Mas trouxe o seguinte poema com o título “Inexplicar”: “Trazer saudade/ leva tempo…/ Cá, rego as minhas.”

    Só deu para salvar esses três versos. Vendo a chuva chegando no dia de São José (19/03), o pensamento ficou dando linha, empinando a pipa da saudade no passado…

    Chuva, no dia de São José, é esperança de fartura na roça. Guimarães Rosa desvelou verdade quando disse que “sertão é dentro da gente.”

    Eu pensei em batizar este texto de “Caju”, uma vez que, na verdade, o fruto é a castanha, a amêndoa. O que popularmente chamamos de polpa, no caju, é o pedúnculo floral, ou seja, um pseudofruto.  Em síntese, a castanha vem primeiro, depois a polpa, que é usada para fazer suco e a cajuína, minha bebida preferida, tem sabor saudade. O poema veio primeiro, depois a crônica. Mas ambos “se banharam” nas águas da chuva de São José. O ofício de lavrar palavra também se faz com as bênçãos do Santo Operário.

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