• O técnico, a VW e a saída da Ford

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  • 18/01/2021 15:32
    Por Gastão Reis

    Vivenciei, por volta do ano 1995, o episódio relativo a um projeto para obter um financiamento da FINEP – Financiadora de Estudos e Projetos. O projeto não vingou, mas jamais esqueci os comentários do técnico que nos visitou. O ponto alto foi sua afirmação indignada de que a Volkswagen-VW não pagava imposto de renda. Era evidente a visão do capital estrangeiro como explorador, esquecendo obviamente o aporte de tecnologia, o treinamento da mão de obra, inclusive dos extratos gerenciais superiores. Ou seja, de brasileiros que aprenderam como administrar uma empresa de grande porte, cujo know-how levaram para outros empregos em diversas empresas, inclusive as nacionais.

    Alguns anos depois, eu me dei conta de dois pontos frágeis dessa acusação do técnico. A VW estava praticando a chamada elisão fiscal. Tratava-se de planejamento tributário, um mecanismo jurídico que permite reduzir a carga tributária ao mínimo sem ferir a lei. Mas o segundo ponto, o mais grave, era o fato de que a VW produzia um veículo e tinha de cobrar o preço de dois. É que a carga tributária era de 100%. (Hoje é menor, cerca de 54%). E quem abocanhava esse valor equivalente a um outro veículo era o governo. Foi assim durante décadas. E o técnico ainda achava que a VW tinha que pagar o IRPJ! Uma situação única no mundo, pois o imposto sobre veículos nos demais países oscila na faixa de 10 a 25% no máximo.

    Vejamos as distorções que uma taxação estratosférica como essa acaba causando. As observações que se seguem são feitas sob a ótica empresarial, mas nem por isso querem justificar desvios de comportamento. Muito pelo contrário, busca mostrar os prejuízos que recaem sobre o País em seus efeitos de longo prazo quando a lógica empresarial que funciona não é respeitada

    A primeira grande distorção de multiplicar por dois o preço de um carro é que o grosso do lucro auferido vai para os cofres do governo. E nada garante que o governo vá aplicar esses recursos de modo correto, como, por exemplo, destiná-los ao esforço nacional de elevar a taxa global de investimento do País. Boa parte foi pelo ralo em despesas questionáveis em benesses de todo tipo como aumentos salariais de servidores, que hoje recebem em média o dobro de quem exerce função similar no setor privado. Uma situação que só ocorre nessa magnitude no Patropi. Instituições internacionais detectaram o problema e até apresentaram sugestões para corrigir essa disfunção remuneratória sem paralelo, que muito contribuiu para o aumento da desigualdade.

    A segunda distorção é que uma empresa submetida a uma carga tributária de 100% sabe que a parte do leão dos lucros vai para o governo. A parte que lhe cabe é, por definição, bem menor. Se ela estabelecesse uma taxa de lucro muito elevada, só beneficiaria mais ainda a mordida do governo. Além disso, a empresa tem que ter um olho no mercado. Ela sabe que existe um limite para o preço que pode cobrar sob pena de ficar com sua produção encalhada.

    A terceira distorção é que a empresa de grande porte tem consciência de que o lucro é o cofre de onde sairá o grosso dos recursos para investimentos em geral e para inovação em particular. Este item é indispensável à sua sobrevivência a longo prazo face aos concorrentes. É ingênua a ideia de que o lucro vai financiar compra de iates e viagens a Paris e outras mordomias.

    Levando em consideração estas distorções e seus efeitos de longo prazo, é mais fácil entender, a partir do exemplo do que ocorreu com a VW, o drama da Ford, que acabou de noticiar que está deixando o País, onde chegou em 1919.

    A grande mídia, em que a visão de curto prazo prevalece sobre a de longo prazo, colocou seu foco nos últimos 10 anos. Em editorial de 13.01.2020, o jornal o Estado de SP nos informa que as fábricas de veículos, de 2009 a 2019, receberam incentivos fiscais da ordem de R$ 30 bilhões. Seriam ingratas?

    É preciso ir mais fundo para perceber a lógica dos negócios dessas megaempresas que operam em escala mundial. Elas trabalham com horizontes de planejamento de até 30 anos à frente, fora os planos de médio e curto prazo. Posicionamento profissional bem diferente do Patropi, que está há quatro décadas patinando sem conseguir entender o que se passa. Competitividade requer pesados investimentos em inovação. Sua sobrevivência exige estarem sempre antenadas nessa direção, o oposto do que vem ocorrendo com o País. O Estadão também nos informa que a Ford vem acumulando prejuízos desde 2013. A tributação extorsiva retirou da Ford sua capacidade de investir, mesmo recebendo aportes volumosos da matriz para se manter funcionando.

    Nesse entreato, esquizofrenicamente, o Brasil se tornou um sucesso no agro-negócio. A boa lógica econômica prevaleceu com uma carga tributária de 6% enquanto a indústria leva uma mordida de 47%. Tem também uma bancada vigilante de mais de 200 deputados federais que se reúnem semanalmente em defesa de seus interesses, coisa que o setor industrial não fez. Erro estratégico.

    O que foi dito no parágrafo anterior teria cheiro de uma conspiração contra a população brasileira? Isto seria ir na mesma direção do viés de esquerda do técnico da FINEP. Ela acabou sendo beneficiada por termos uma agricultura altamente eficiente, capaz de alimentar mais dois países, com população equivalente à nossa, além do próprio Brasil. E a preços internacionalmente competitivos. Se temos um problema hoje nessa área é de obesidade, e não de falta de comida. Já a indústria de transformação parou no tempo derrotada por uma carga tributária extorsiva de 47%. Os 54% da indústria automobilística sacramentou o atestado de óbito da Ford no Brasil.

    EUA e países europeus subsidiam pesadamente sua agricultura. No caso de sua indústria, a tributação é muito leve ou quase zero. Muito distante de nossa esquizofrenia. Some a tudo isso, a falta de visão do STF, ao decidir que redução proporcional de salário e jornada no setor público é inconstitucional, e um congresso lerdo para passar reformas urgentíssimas como a tributária e a administrativa, ficam claras as razões de a Ford pedir o chapéu. O presidente da Anfavea, associação das montadoras, disse que elas não querem subsídio, mas competitividade, que lhe foi vetada. O técnico estava muito mal informado.

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