O que li, vi e ouvi
A vida, “como ela é”, traz consigo os gêneros literários, porque a realidade está além da ficção. A todo instante, somos surpreendidos por fatos trágicos que chocam o mundo. Na atual conjuntura, sobreviver é uma Odisseia. A luta épica de um trabalhador para manter a família dignamente segue no anonimato, não é relatada em epopeias. Os heróis do dia a dia sacrificam a vida por um salário. E há momentos líricos que não são descritos em versos.
Para traduzir a realidade, seja em prosa ou verso, é preciso conhecer as palavras para evitar a prolixidade. O “viver não é preciso”, mas a linguagem requer objetividade para correr sobre o fio da verossimilhança.
No dia 30/01, tive a satisfação de receber e ler o livro “O que Vi e Ouvi” do magistrado, historiador, professor e escritor Antônio Izaías da Costa Abreu. As crônicas anedotizadas que estão nesse livro revelam momentos vividos que ele mantém na memória.
Na introdução, ele diz: “o que ocupa as minhas recordações são as histórias que me provocam o riso e, ao decidir registrar passagens marcantes, optei por eternizar, em livro, aquelas que mais me causaram aprazimento”.
Por essa vertente eternizada pela alegria, é possível entender o que afirmara Charles Chaplin:
“É saudável rir das coisas mais sinistras da vida, inclusive da morte. O riso é um tônico, um alívio, uma pausa que permite atenuar a dor.”
Isso reitera o último parágrafo do prefácio assinado pelo professor Arno Wehling, presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL):
“Essa leveza que o desembargador Izaías cultiva e que Machado referenda a propósito da crônica, ele nos traz num momento difícil de sua vida, atribulada pela doença de sua inspiradora. Só uma existência concedida na ternura poderia nos dar este presente. ”
A crônica é um gênero textual que traz a informalidade da conversa entre amigos, explora o inusitado do cotidiano e requer uma linguagem sóbria. O número de amigos mencionados pelo autor no índice onomástico é grande. Fato este que revela o apreço pelas amizades construídas ao longo da vida dedicada à justiça.
Já tive oportunidades de ouvi-lo. Um dia, após uma solenidade na Academia Petropolitana de Educação, da qual somos membros, paramos em frente da Casa de Cláudio de Souza. Éramos quatro acadêmicos que esticávamos a prosa na calçada da Casa, quando se aproximou um senhor, entre 40 a 50 anos. O cheiro de bebida alcoólica chegou primeiro. Ao perceber o estado do referido senhor, o desembargador Izaías, com sua voz mansa, falou: – ouve essa…
O senhor franziu a testa, inclinou o tronco para a frente, aguçou o ouvido e manteve um semblante sério. À medida que o desembargador falava, o sorriso do senhor se soltava. Ao final da história, sorrimos do caso narrado. Pelo adiantado da hora, despedimo-nos com a certeza de ter vivido uma noite agradável.
O desembargador e outro amigo acadêmico foram para a rua Roberto Silveira, o senhor, com um ar de satisfação, foi no sentido do Relógio das Flores. Eu e outro acadêmico seguimos em direção à rua Nelson de Sá Earp.
Ilustre desembargador, desculpe, não me lembro do caso que contaste. Observava a mudança no semblante daquele senhor. Mas não esquecerei a lição de humildade e gentileza que nos proporcionaste. Escrevo este texto como um agradecimento pelo livro que me enviaste. Certifiquei-me, ao lê-lo, de que é preciso manter a ternura como a flor que rompe o asfalto como descrevera Drummond em “A Flor e a Náusea”. – Obrigado!