• O quarto poder, as instituições e a economia

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  • 31/07/2021 08:00
    Por Gastão Reis

    A separação entre Chefia de Estado e de Governo é algo que perdemos desde 1889. A esquizofrenia em reunir as duas funções na pessoa do presidente da república reside no fato de supor que alguém possa ser fiscal dele mesmo com isenção. A Chefia de Estado é, sim, um quarto poder a ser acionado quando os outros três se degladiam. A tradição parlamentarista o incorpora para superar crises sem quebra da institucionalidade. Não acredita no mantra dos “poderes independentes e harmônicos” propalado por juristas presidencialistas. Se independentes, dificilmente serão sempre harmônicos; se harmônicos, onde fica a independência?

          A proposta do semipresidencialismo do presidente Arthur Lira da Câmara atribui essas duas chefias a atores distintos. Não foi bem recebida. Merval Pereira, por exemplo, Globo de 20.7.2021, define sua posição no título: “Semi-presidencialismo é golpe”, afirmando que não teria sentido fazer tal mudança a um ano das eleições. Estaria esvaziando os poderes dos principais candidatos à presidência uma vez que a administração do País ficaria a cargo do Primeiro-Ministro. Não é bem o caso. O novo sistema só seria implantado em 2026. Os principais líderes de esquerda também se manifestam contra a mudança. Aparentemente, acham normal o impeachment serial em que nos metemos sem a devida dose de estabilidade necessária a uma boa administração pública.

    O cientista político Christian Lynch defende a proposta no sentido de fortalecer o presidente e tornar a Câmara mais responsável. O Primeiro-Ministro só toma posse após costurar uma coligação que lhe dê sustentação política na Câmara. O pecado mortal do presidencialismo é que esse processo só ocorre após a posse do presidente. Cada novo projeto de lei exige novos arranjos, já que o governo tem uma base instável. Lynch argumenta que é bem mais fácil trocar um Primeiro-Ministro do que um presidente, como ocorre no atual regime. A quebra de confiança é suficiente para defenestrá-lo. Ato contínuo, se elege um novo Primeiro-Ministro com maioria previamente articulada na Câmara. O poder passa ter a densidade necessária para agir.

    Tendemos a fazer análises centradas no curto prazo, uma espécie de maldição do jornalista semelhante ao “Vamos supor” do economista. Deixamos de fora a experiência internacional e até mesmo a nossa do século XIX. Em linhas gerais, os países latino-americanos e africanos atuais adotam o regime presidencialista puro com resultados desanimadores. Os países europeus e os de outras partes de mundo como o Canadá, Austrália e Japão são parlamenta-ristas, ou semiparlamentaristas, ou semipresidencialistas. Estes últimos são politicamente mais estáveis e prósperos.

    A estabilidade política que mantivemos ao longo do século XIX em muito contribuiu para nosso crescimento econômico. Pesquisa recente, de 2013, de Tombolo, A. G & Sampaio, A. V., “O PIB brasileiro nos séculos XIX e XX”, nos informa que de 1820 a 1875, o PIB per capita cresceu 1,21% a.a., ou seja, praticamente dobrou no período. Se levarmos em conta que, no acumulado da última década do Império, houve um aumento adicional do PIB per capita de 17% e do PIB total em 42%, fica clara a contribuição da política à economia, ainda que esta não tenha sido tão pujante como a dos EUA no mesmo século.

    E assim chegamos ao fatídico 15 de novembro de 1889 em que houve não apenas a queda de uma dinastia, mas um desarranjo institucional que deixou o País sem os instrumentos políticos garantidores da primazia do interesse público sobre os paroquiais. No livro que devo publicar em breve, “História da Autoestima Nacional – Uma reflexão (heterodoxa) sobre monarquia, república e interesse público no Brasil”, apresento um quadro comparativo das instituições do Império e da república. Dos 12 indicadores listados de qualidade político-institucional, o Império satisfazia cerca de 80% deles e a república, hoje, mal atinge 20%. Sua fragilidade institucional explica em boa parte nosso insucesso.

    Nessa linha, o excelente livro “A Moeda e a Lei – Uma história monetária brasileira – 1933-2013”, de autoria do ex-presidente do Banco Central Gustavo Franco, nos fornece um diagnóstico documentado dessa fragilidade. E não só em relação à condução da política monetária no período. Ele nos fala dos três demônios, que nos espetaram com seus tridentes: o inflacionismo (“tributação” da população através do “imposto inflacionário”, agente-mor da desigualdade); o isolacionismo (postura diante de um mundo em desagregação com efeitos muito além da II Guerra Mundial); e o seletivismo (o viés de seletividade no crédito e nos efeitos da inflação com a desculpa esfarrapada dos imperativos sociais e do desenvolvimento). É um duro crítico de nossa inépcia ao longo de décadas. Uma espécie de samba do crioulo doido com ares doutorais.

    Quando somamos ao desastre que foi a Velha República (1889-1930) o que se seguiu de 1933 até 1993 (60 anos!), o saldo do regime republicano é decepcionante. Pior: de 1980 para cá, estamos colecionando décadas perdidas. A saída ideal seria a do parlamentarismo com um Chefe de Estado vitalício, um monarca, já que temos uma tradição monárquica de quatro séculos.

    O caso de Portugal é ilustrativo. A constituição portuguesa exige do presidente eleito seu desligamento do partido que o elegeu. Passa a representar a Nação Portuguesa. Mario Soares, entretanto, foi Primeiro-Ministro duas vezes e presidente da república, de 1986 a 1996. E sempre pelo Partido Socialista. Eleito presidente, num passe de mágica, não pertence mais a partido algum. Portugal parece saudoso de um monarca na Chefia de Estado, de fato, muito mais isento do que um presidente eleito.

    A proposta do presidente da Câmara, como etapa intermediária, tem, em princípio, o mérito de reduzir os efeitos desastrosos da instabilidade política sobre a economia. No nosso caso, uma monarquia parlamentar teria melhores chances de combinar estabilidade política com desenvolvimento sustentado.

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