• O povo não quer continuar bestificado

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  • 20/10/2021 16:15
    Por Gastão Reis

    Aristides Lobo, grande propagandista da república, teve a honestidade intelectual, poucos dias depois da dita proclamação, de escrever um artigo que ficou na História. Seu trecho mais famoso é o seguinte: “O povo assistiu àquilo bestificado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam seriamente estar vendo uma parada militar”. Certamente, ele se deu conta de que a participação popular em seu sonho foi nula. A alma popular teve o pressentimento de que não vinha coisa boa daquele golpe militar. E não foi preciso muito tempo para confirmar a desdita.

    De fato, Alberto Sales, irmão de Campos Sales, que foi presidente de 1898 a 1902, já em 1901, publicou no jornal Estado de São Paulo vários artigos críticos do novo regime, cujo teor era na seguinte linha: “A política divorciou-se inteiramente da moral. Governadores e Congresso firmaram entre si pactos reprováveis, esquecidos e desprezados os deveres constitucionais, para se entregarem à gatunagem e à licença, enchendo as algibeiras com o produto do imposto e afugentando os honestos com a perseguição política”. Se o ano não fosse de 1901, seria a perfeita descrição do que ocorre hoje no Patropi, 120 anos depois! Patético.

    A citação do parágrafo anterior está no livro “A Invenção Republicana”, de Ricardo Lessa, terceira edição revista e aumentada, de 2015, em que nos fornece pesquisa bem documentada de como nasceu e morreu a República Velha, varrida pela Revolução de 1930. Na Nota Introdutória à 3ª Edição, Lessa nos fala de nossa memória fraca em relação à própria história nacional como se fosse composta “por fragmentos de tempo descontínuos e desconectados” em contraposição aos norte-americanos sempre ligados a suas próprias origens em que o passado tem a função de iluminar o futuro.

    Trata-se, sem dúvida, de um livro que merece ser lido. Neste caso, entretanto, ele não faz a ressalva que essa amnésia histórica nasceu com a república. Impossível imaginar Dom Pedro II, cujos ancestrais foram atores maiores na história de Portugal e do Brasil, esquecido de suas raízes. Ou o Barão do Rio Branco, que sabia de cor as efemérides importantes ocorridas em cada dia de nossa História, ignorando suas lições. Seu lema de vida “Ubique Patriae Memor”, ou seja, “Em qualquer lugar, sempre a memória de pátria”, revela seu amor ao Brasil e fidelidade ao dito “História, mestra da vida”. E assim foi com as figuras de relevo de nossa história monárquica.

    O livro de Renato Lessa tem no subtítulo, “Campos Sales, as Bases e a Decadência da Primeira República”, um fio condutor de seu esforço como pesquisador de buscar entender a República Velha em maior profundidade. Ele nos faz ver que Campos Sales, nosso segundo presidente civil, teve real preocupação em buscar caminhos capazes de preservar o interesse público dentro de um modelo contraditório de atuação que convivia com arbítrios e truculências típicas da política dos governadores.

    Ao fazer vista grossa para os desmandos na política local nos estados, Campos Sales pretendia obter apoio dos governadores na montagem de uma base no Congresso que lhe permitisse pôr em prática seu modelo de governo. Sua concepção era, estranhamente, despolitizadora e administrativa, o que, em sua visão, lhe daria condições de governabilidade. Ao mesmo tempo, pôs em letra de forma a seguinte pérola: “Quem procura ouvir as opiniões alheias arrisca-se a mudar as suas. E era exatamente isto que eu queria evitar.” Essa visão seria abstrusa para Pedro II,sempre atento a seus conselheiros e ao povo.

    Lessa, por sua vez, reconhece que “a república não derivou de qualquer crise institucional do Império. As instituições imperiais não estavam em colapso”. Diz mais: “O modelo institucional adotado no Império estabeleceu nexos precisos de integração entre governo, polis e demos”.  E admite que a República Velha foi incapaz de fazer isto.  Daí seu tempo histórico de duração ter sido tão curto.

    Na verdade, o povo não ficou bestificado apenas nos dias 15 e 16 de Novembro de 1889. Esse processo de bestificação, no sentido de profunda indignação, perdura até hoje. Quem se reconhece nos parlamentares que deveriam nos representar nos planos municipal, estadual ou federal? Ou realmente acredita na seriedade com que os dinheiros públicos são tratados por seus gestores? Ou ainda que existe um compromisso sério dos poderes constituídos em combater a desigualdade com educação pública de qualidade?

    A URSS, após 70 anos de comunismo, se deu conta de que o regime estava fazendo água por todos os lados, e deu um cavalo de pau em sua economia em direção ao mercado, voltando a ouvir Adam Smith. E a China foi na mesma direção sem esperar tanto tempo. O caso brasileiro já perdurou quase o dobro do da URSS, mais de 130 anos, sem que mudanças radicais tenham ocorrido para extirpar as mazelas da república.

    A novela “Nos tempos do Imperador”, apesar de algumas cenas um tanto forçadas ou de humor discutível, tem mostrado ao Povo o respeito de Pedro II ao dinheiro público e à manutenção da dignidade nacional como na questão Christie, que o levou a romper relações diplomáticas com a Inglaterra. Ao reatá-las, recebeu as desculpas solenes do plenipotenciário inglês ladeado pelos presidentes da Argentina e do Uruguai em Uruguaiana, no teatro de operações de guerra, atitude proposital para constranger o embaixador inglês.

    A boa notícia é que o povo brasileiro está num processo de tomada de consciência dos prejuízos que lhe foram causados pela república desde 1889. É revelador o interesse que vem despertando nossa própria História monárquica nesses últimos anos. Internet, livros, redes sociais e vídeos têm permitido à nossa população saber o que realmente foi o regime republicano no Brasil.  

    Qual Pedro II, ao ser deposto em 1889, e recusando um cala-boca de 5 mil contos de réis, uma verdadeira fortuna, a população faz a mesma pergunta: “Com que autoridade esses senhores estão dispondo do dinheiro público?”

    (*) Palestra do autor, intitulada “O legado da herança luso-afro-indígena até 1889”, pode ser acessada digitando este título no Google. E se surpreenda.

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