O poeta que vê mais longe
Porque não vê o mundo com olhos comuns, Fernando Magno enxerga mais do que todos. Não é coisa do natural aguçamento de sentidos que dá ao surdo olhos mais capacitados e, aos cegos, mais afiados ouvidos. Antes de ser cego, Fernando Magno era poeta. Porque muito antes da poesia nele encarnar, já praticava um viver poético que é certa forma de bondade. Tímido, não faria bom ofício como um Patativa de feira. Modesto, não se daria, como certos poetas federais, em atração aos palácios. Embora palácios mereça. Observar Magno autografando na portentosa mesa da Casa de Cláudio de Souza faz enxergar ali, pontificando, um patriarca da cidade. Mas imponência não lhe faltaria mesmo em mesa de madeira pobre, numa palhoça de barranca amazônica, recitando a matutos. Um nobre.
Comecei pela vista faltante. Para tantos que lidam com portadores de necessidades especiais, parece assunto a ser evitado. Ora, acabamos de vir da Paraolimpíada de lições de superação, histórias de coragem, onde qualquer tentação de piedade era esmagada na admiração pelas estupendas performances. De cegos, pernetas, surdos, sem braços? Nada! Performances de atletas capazes e exímios. Não há espaço para coitadices em gente que antes de ter ou não ter membros, ter ou não ter olhos, possui corações guerreiros. Fernando Magno tem coração assim, nome de rei, aura de patriarca, e um sorriso de abraço, de quem porta com humildade esse decanato exercido sobre os mil poetas da cidade. Quando a carência de olhos físicos aposentou o mestre de química, deu-nos o alquimista de palavras. Mais precisamente, revelou-nos o poeta que nele já vivia e que ele talvez desconhecia ou que ele, quem sabe, acanhasse.
Assim, comecei pela vista faltante porque ela realça o quanto enxerga um homem que dispõe palavras em pérolas, como quando fala dos olhos, que “são guardadores de coisas”, anotando, por exemplo, as “pupilas de seda” da amada. E, porque a vida lhe ensinou, afirma que “existir é espetáculo de atos muitos”. Conforme a idade avança, como em todos os homens sábios, que jamais da infância se perderam, sua infância se eterniza na escrita, como quando verseja certo cão negro chamado Mondengo. Ou quando ele, homem de tantos cantos, pergunta “em que pedra se afia a magia do acalanto?”. E revive-se menino sempre, porque “por antigos caminhos cheguei, querendo de mim meus sapatos de menino”. É por isso que capacitou-se a anunciar a soberana compreensão de todos os homens de bem que sabem que “A palavra de menino é tão importante quanto a de um general”. E diz esse poeta pela voz do menino que aquelas águas viveu, que o Amazonas é o “abecedário de todas as águas”.
O caudal da sua obra nos leva a esse último “Era Setembro e Madrugava” onde justamente o menino reina, augusto e magno senhor da memória. Um livro-álbum em que, deliciado em desbravamentos, salta o menino, do Amazonas ao Tejo. As peripécias de viagem, brevemente relatadas, nos fazem emoldurar melhor o homem curioso e divertido por trás do poeta, que parte do Rio Mar ao Mar Oceano, e por via deste, à Pátria avó. Até nos chegar, depois de estagiar tantos domicílios. Das barrancas do Grande Amazonas aos barrancos do miúdo Piabanha, o grande poeta. Aqui se enraíza e cresce, aqui ama, cria e se nos oferece. Sua visão, que carrega memória e profundidade, sua visão que vê coisas da alma, que mais longe enxerga, é uma lanterna. Devia ser estudada nas escolas.
denilsoncdearaujo.blogspot.com