O ostracismo da inteligência
A semana que passou serviu para lustrar o Brasil com uma camada inimaginável de bobagens, fruto viçoso de uma nação que decidiu condenar a inteligência ao ostracismo e exaltar a decrepitude de pensamentos rasos e rasteiros embalados em mesóclises de colarinho-branco. Não há precedente histórico para a sarapieira que emerge do lamaçal instalado na Praça dos Três Poderes.
Não é ousadia ou absurdo cogitar a possibilidade de o presidente Michel Temer ter utilizado o furor da imprensa e a ebulição das redes sociais para criar um factoide capaz de dominar as manchetes e abafar as escandalosas manifestações públicas de seus amigos, aliados e asseclas. É indisputável que Temer domina a ferramenta linguística e, mesmo improvisando, sabe construir orações adequadas ao espaço e à plateia. Até aqui, todas as cascas de banana onde escorregou foram por ele milimetricamente colocadas no caminho. Tombos falseados para promover gritas calculadas.
Ao discursar sobre o papel feminino na fiscalização de preços nos supermercados, Sua Excelência estava apenas se exibindo para os leões e desviando o foco do verdadeiro febeapá protagonizado por setores do PMDB — Renan Calheiros em especial —, e do nauseabundo acordo que vem sendo costurado às sombras por políticos de todas os matizes, desesperados com a guilhotina das urnas de 2018 e com a possibilidade do xilindró. Os leões, por óbvio, saltaram sobre o presidente, levando-o às manchetes e timelines com críticas que não são novidade, tampouco ofensivas ou perigosas ao mandatário que não precisa de apreço ou aprovação popular.
A gritaria contra o discurso sem pertinência temática e temporal de Michel Temer escamoteou a formação do tsunami de lama que pretende descriminalizar o caixa dois eleitoral. Figuras de grande relevo e envergadura no mundo do poder político — desde o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso até Gilmar Mendes, ministro do STF e presidente do TSE — estão dando o tom do golpe fatal contra a democracia quando defendem a banalização das regras para o financiamento de campanhas eleitorais. Não por acaso, os doutos picaretas eleitos com dinheiro roubado e/ou “por fora” começaram a dançar desavergonhadamente a valsa da impunidade.
Ora, convenhamos, quem defende que o caixa dois de campanha não é um crime, tão somente enxerga o Tribunal Superior Eleitoral e todo aparato regional da Justiça Eleitoral como uma imensa instituição oficial de lavagem de dinheiro. Por que esconder a doação de recursos para a campanha de um político ou partido senão por interesses suspeitos e até ilícitos? Essa conversa de “privacidade para o doador de campanha” e “tentativa de criminalizar injustamente todas as doações de campanha” é papo furado, é mais um atentado contra a inteligência de quem é honesto no Brasil.
Prova cabal de que condenamos ao ostracismo a pouca inteligência que nos restou após a cachaçada do carnaval foi crer com fé e divulgar sem pestanejo que a autoimolação de Michel Temer no Dia Internacional da Mulher foi mera gafe, um deslize anacrônico. A estratégia palaciana funcionou e nossa estupidez é assombrosa.
P.S.: Aliás, nunca é demais lembrar em tempos tão rasos que o ostracismo nada tem a ver com as ostras, ainda que a simbologia nos pareça francamente adequada. Óstraco era o fragmento de cerâmica, louça ou pedra onde os cidadãos votantes da Grécia Antiga escreviam os nomes daqueles que pretendiam exilar do convívio social por um período de dez anos como pena por ameaçarem a democracia. O castigo, por sua cédula, foi nomeado de ostracismo.
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