• O mundo dos lembrados

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  • 29/01/2019 10:05

    Saudade. Esta é o leito por onde correm as lembranças. Estas são fontes de lágrimas: ora vertem pela alegria; ora, por tristeza. A dor é a correnteza, o fluxo do sentimento, por isso ensina a gemer, a manter o silêncio, além de apontar o caminho do perdão. 

    O tempo tem me ensinado muito. A irreversibilidade de cada instante vivido já me atormentou bastante. Hoje, depois de meio século de vida, o sabor das horas é outro. Entendo que até a massa tem que descansar antes de tornar-se pão. É preciso saber fermentar a ideia para que ela possa crescer. Não há como fugir da limitação cronológica, na qual todo ser vivo é inserido.

     A certeza do fim aumenta na progressão desse movimento cíclico do planeta que habitamos. Aprendi a guardar lembranças. As recordações afrouxam os nós das gravatas, descontraem, pois nos permitem voar. E assim nos desprendemos do presente.

    É bom lembrar das pessoas que foram fermento dentro de nós, fazendo-nos crescer como ser humano. É assim que lembro do Padre Quinha e de outros amigos que foram pontes nesta travessia que chamamos de vida. Eles partiram para a dimensão exclusiva dos que foram “sal da terra” e “luz do mundo”.

    O dia 18 de janeiro de 2019 ficará marcado na minha memória: vi o translado da urna, com a matéria humana do Padre Quinha, sendo depositada na cripta da Igreja São José de Itaipava. O corpo que estava sepultado no cemitério, que fica nos fundos da Igreja, foi exumado e levado para dentro dela. Essa natureza material do homem tem este fim: “és pó e ao pó hás de voltar”.

    O que é consumado no tempo tem essência perecível. A natureza humana é efêmera. Quem só se preocupa com ela e não faz nada para nutrir o espírito tem grande possibilidade de cair no esquecimento, pois o tempo apaga quem não serve ao Bem. A história que se escreve com a própria vida é que encontra espaço no coração de quem fica quando partimos. Quem alimenta a alma tem mais chance de alcançar a eternidade. 

    Há seis anos, o Padre Quinha partiu, em 18/01/2013. Diante da emoção que vi no semblante das pessoas que participaram da missa, antes do translado da urna para a cripta, deu para perceber que ele estará eternamente na lembrança de quem teve a graça de desfrutar da sua convivência.  As lágrimas que caíam sobre o leito da saudade demonstravam a resignação diante dos desígnios de Deus, mas também revelavam o quanto do Padre Quinha estava no coração delas. Cada um tinha o seu motivo, uma razão para externar a dor que somente quem a sente pode mensurar. Há também o choro contido no silêncio, lágrimas correm por dentro.

    Um fato me levou a refletir: um senhor que regularmente anda pelo centro histórico embriagado, que frequentemente dorme na rua, eu o encontrei na igreja de banho tomado, barba feita, roupa limpa, sem nenhum sinal de embriaguez. Estava ali, com certeza, pelo amor ao Padre. E a sobriedade daquele dia era uma reverência a quem tanto se dedicou aos menos favorecidos.

    P.S: Em 18/01, iniciei esse texto com o título “O vale das lágrimas”, pois foi a imagem que tive ao final da missa. Mas, no dia 22/01, mudei-o, após visitar um casal de amigos. A esposa me disse que um dia lamentava a perda de um ente querido e a filha de 6 anos a consolou:

    – Chora não, mamãe, ele tá bem! Tá no mundo dos lembrados! Lá só tem alegria. Quem tá lá não gosta de ver ninguém chorando. Quem fica triste é quem vai pro mundo dos esquecidos.

    As crianças nos surpreendem com verdades captadas no mundo da imaginação, mas que revelam lições de vida. O Padre Quinha está no mundo dos lembrados, o filho de Maria.

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