O mau cheiro das flores do mal é outro e antigo
Cerca de dois anos atrás, Miguel de Almeida publicou, em 01/03/2021, em O Globo, um artigo em que ele afirmava: “Durante seu reinado, Pedro II demonstrou horror aos empreendedores e fechou os olhos ao tráfico de escravos”. Na minha réplica, “O articulista desinformado, os fatos e o futuro”, de 06/03/2021, nos jornais de Petrópolis, eu rebati as duas acusações.
O simples fato de dar preferência a engenheiros nas bolsas que concedia pelo chamado “bolsinho imperial”, recursos oriundos da dotação da Coroa, denota sua preocupação em formar pessoas que pudessem dar suporte às inovações trazidas pelos empreendedores. Quanto ao fato de ter fechado os olhos ao tráfico de escravos, D. Pedro II, em reunião com seus ministros, em 1849, afirmou que abdicaria se a questão da suspensão do tráfico não fosse resolvida. No ano seguinte (1850), a Lei Eusébio de Queiroz pôs fim à questão.
O mesmo Miguel de Almeida publicou, em 27/03/2023, no jornal O Globo, um artigo intitulado “Flores do Mal”. Como estas devem ter mau cheiro, os premiados foram o ex-vice presidente Hamilton Mourão e o ex-juiz Sergio Moro.
Acusa Mourão de silenciar quanto às vacinas e às urnas eletrônicas, alvos frequentes de Bolsonaro. O mais estranho foi sua acusação contra Moro que nunca teria titubeado em ganhar um cargo e ficar de joelhos. E que teria sido escorraçado do cargo de ministro.
Vamos por partes. A presença militar na política é um problema mal resolvido pela sociedade civil desde 1889. Como tenho dito, é chamar um advogado para resolver uma dor de dente aguda. Todos concordamos quanto ao absurdo de recorrer ao advogado, mas não nos damos conta de que a presença militar na política é outro absurdo, justamente por não terem a formação adequada para serem políticos. Disciplina e hierarquia são as pedras angulares da formação de um bom militar. O mundo político é diferente.
Quanto ao senador Sergio Moro, ganhar um cargo e ficar de joelhos não se enquadra na biografia de quem fez concurso para ser juiz, e passou. Não foi à moda Toffoli. Teve competência técnica para ocupar o cargo. Portanto, não precisou ficar de joelhos, como certas figuras que hoje compõem o STF. Mais: Moro não se curvou às exigências de Bolsonaro. Deixou o ministério. Ato digno.
Mais adiante, o articulista menciona os dias finais da ditadura militar de 21 anos em que, de fato, os militares saíram desgastados ao deixar uma dívida cavalar e uma inflação em alta. Ato contínuo, ele menciona que foi necessária uma constituinte para passar o País a limpo. A necessidade dela, sim, mas que passou o País a limpo não foi o caso. A dita participação popular havida foi na direção de atender a interesses de grupos e nichos, jamais do bem comum.
As críticas acerbas à Carta de 1988 nasceram de oponentes tão díspares como as do competente Roberto Campos e de José Sarney. Este afirmou, com razão, que o País se tornaria ingovernável. A sequência de presidentes eleitos, desde 1988, foi a pior possível, com uma ou outra exceção confirmatória da regra, como a de FHC e talvez mais um ou dois. O Brasil desde então passou a ser uma espécie de colecionador de décadas perdidas. E, pelo jeito, a atual vai ser mais uma. Longa marcha lenta.
Miguel de Almeida acerta quando menciona a desproporcionalidade, por estados, de deputados federais na Câmara, que fere princípios democráticos. Mas acusa Mourão e Moro de reciclarem o discurso para se omitir de uma autocrítica. Segundo ele, perpetuam os preconceitos e a desumanidade da extrema direita, como se a extrema esquerda não fizesse até mesmo pior.
Em seguida, Miguel de Almeida dá um salto desqualificante em sua argumentação ao fazer cair de paraquedas em seu artigo a menção ao livro “Bilionários Nazistas”, do jornalista David de Jong. Os empresários alemães acabaram colaborando com Hitler, e o fizeram não só por dinheiro, mas também por convicção ideológica. Terminada a guerra, negaram o que haviam feito e dito. Faz então um paralelo com a Alemanha totalitária para afirmar que a convicção de princípios teria explicado a adesão de empresários brasileiros a Bolsonaro. Vamos e venhamos, a semelhança é forçada, até mesmo pela gravidade dos fatos ocorridos na Alemanha da época, inclusive o holocausto.
O artigo tem um viés de esquerda, embora tenha apontado problemas sérios como a questão da representatividade desigual entre os estados. A jabuticaba nasceu com os militares. Um voto de um eleitor do Acre pesa bem mais na eleição de um deputado federal do que o do paulista. Conclusão: o Acre tem proporcionalmente mais deputados do que deveria ter em relação a São Paulo. Esse processo desvirtuado dificulta ainda mais a concepção da democracia de baixo para cima, tão cara aos americanos, em que o peso dos estados é levado em conta nos colégios eleitorais no resultado das eleições, inclusive as presidenciais. Lá, existem estados sem um único deputado federal.
Em artigo anterior, eu mencionei a questão dos 4/5 na nossa última eleição presidencial. Entre as cinco grandes regiões geográficas do Brasil, Lula só venceu no Nordeste, ao passo que Bolsonaro foi vitorioso nas outras quatro. No conceito de democracia de baixo para cima, operacionalizada pelo colégio eleitoral americano, Bolsonaro teria vencido a eleição. Nos EUA, houve vários casos de presidentes eleitos pelo voto popular que não tomaram posse porque perderam nos colégios eleitorais dos estados.
Mas o colégio eleitoral não existe no Brasil, diria Miguel de Almeida. Mas a questão pode ser vista por outro ângulo. Nos estados, a maioria, em que Bolsonaro venceu, os parlamentares de direita também tiveram expressiva votação. Diferentemente dele, tomaram posse na Câmara e no Senado. E hoje representam um obstáculo ao governo Lula, mas não de oposição sistemática, e sim vigilante contra as maluquices de Lula e PT. O patético é a frequência com presidentes anteriores tiveram o mesmo infortúnio.
Deu para perceber, caro(a) leitor(a), de onde vem o mau cheiro? Sem dúvida, do nosso sistema eleitoral.
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