O legado institucional de D. Pedro I
O mês de setembro sem parada cívica é uma boa oportunidade para relembrar quem proclamou a nossa independência – Dom Pedro I. Torná-la realidade, mantendo o País unido, não foi obra fácil. Por isso mesmo, hora de rever a ótica unidimensional, e não raro distorcida, com que é exposto seu personagem principal. Não faz justiça ao homem que tinha o hábito de ler duas horas por dia. O fato foi relembrado pela historiadora Iza Salles em seu livro O coração do rei. Comprova uma atividade intelectual regular que o colocou a par das ideias liberais dos novos tempos, absorvendo-as e as colocando em prática.
A História oficial tem sido parcial em seus registros. Prefere a superfície à substância. A visão corriqueira, com frequência, acentua seu lado impulsivo, apaixonado e por vezes autoritário, como se sua figura histórica fosse um monte de emoções desconexas. Se errou no varejo, acertou no atacado. Ser democrata criado numa tradição democrática é fácil. Difícil, e meritória, foi sua trajetória pessoal de quem foi criado numa tradição absolutista e fez uma opção constitucional.
Pouco se fala do homem que, sob pseudônimo, em artigo publicado na imprensa da época, afirmava ser contra a escravidão e a favor do trabalho assalariado, por entender que o instituto servil corrompia não só o escravo, mas também o senhor; do músico de talento, que teve uma abertura sua regida pelo grande Rossini; do general de gênio, que soube conduzir e vencer a campanha constitucionalista contra seu irmão absolutista Dom Miguel em condições iniciais extremamente adversas; e do legislador que deixou sua marca em duas constituições, ambas elogiadas por constitucionalistas ingleses de então, que propiciaram estabilidade e progresso. Aqui, com Dom Pedro II, e, em Portugal, com Dona Maria II, a brasileira que lá reinou por três décadas.
Dom Pedro I foi também – e muito – marcado pela dualidade. Ter isso em mente torna mais fácil compreender o modo como atuou em nossa História. Foi, de fato, política, geográfica e até fisicamente dividido. No plano político, ele sofreu os efeitos do tipo de educação que recebeu, que não o impediu de fazer a opção correta. Na geografia, um oceano separava o Brasil de Portugal. As implicações geopolíticas eram claras, trazendo à tona a dificuldade, se não a impossibilidade, de manter os dois países unidos. Fisicamente, nem mesmo a morte o livrou da dualidade. Seu coração está na cidade do Porto, em Portugal, e os ossos foram trazidos depois para sua outra pátria, o Brasil, mais precisa-mente para a cidade de São Paulo.
Este homem, homenageado a cada 7 de setembro, empenhou-se em construir instituições que pudessem dar solidez à nova nação que surgia no concerto das demais. Visões simplistas preferem desmerecê-la por ter sido outorgada e não promulgada. Este, entretanto, não é o cerne da questão. O que importa saber a respeito de qualquer texto constitucional é se ele dispõe de instrumentos eficazes de cobrança de responsabilidade e de punição dos desmandos perpetrados pelos governantes contra o bem comum. Foi por isso que o constitucionalista Afonso Arinos afirmou ter sido a nossa melhor Carta.
O momento histórico ora vivido deixa à mostra as feias entranhas da república: corrupção sistêmica, desigualdade brutal e políticos que não nos representam. A confiança e a representatividade não são os pilares da sustentação dos governos. A carta de 1824 antecipava de um século a proposta de Karl Popper de que o fundamental é que maus governos durem pouco. Seus autores não se deixaram enganar pela questão tradicional de qual seria a melhor classe para governar. Filósofos, aristocratas, intelectuais, empresários, trabalhadores, seja lá quem for, todos podem falhar. Então que sejam breves.
O que surpreende, ainda hoje, no nosso arcabouço político-institucional são os ilustres ausentes como o sistema parlamentar de governo, em que sempre existe um quarto poder independente e harmonizador, o Chefe de Estado; o voto distrital puro; e o controle externo para valer do Judiciário, presentes na carta de 1824(!). E foi assim que o voto de confiança, o controle dos políticos pelo eleitor e o monitoramento eficaz do Judiciário impediram que o governo do povo, pelo povo e para o povo fincasse raízes em solo brasileiro. É notável a presciência de D. Pedro I que o levou a dotar o País de instrumentos efetivos de defesa do interesse público, que a república, em boa medida, engavetou até hoje. Sem estas reformas, a marcha lenta continuará. Ele se mantém atual. E nós?