O legado enquanto chaga
Hoje não restam mais dúvidas quanto ao caráter do chamado “legado olímpico”, apregoado como a recompensa para a população do esforço feito pelo Estado em desassistí-la para priorizar um evento que a maioria não tem acesso.
As críticas ao modelo de política que orientou a concepção do projeto olímpico já vinham sendo feitas desde sua apresentação, apontando o viés elitista e excludente que tal projeto demonstrava. Ainda no rescaldo das manifestações de mesmo caráter na época da Copa do Mundo, as mobilizações e denúncias acerca das Olimpíadas e os interesses que envolvem este evento tiveram o mesmo destino: o solene silêncio dos meios de comunicação e a repressão policial contra os que denunciavam as remoções forçadas, a coação, o processo de assepsia da pobreza que a especulação imobiliária necessitava e toda sorte de arbitrariedades contidas neste processo. Tudo tendo o Estado que a este serviço se prestava.
Os jogos olímpicos funcionaram como mote, como argumento necessário para levar a termo projeto criminoso e antipopular, capaz de convencer a opinião pública, bestificada pelo senso comum, sobre a justeza das remoções e outras violências contra a população pobre e desassistida. Após os jogos olímpicos que o grosso da população só assistirá pela TV, a Vila Olímpica, ao invés de reverter para a população que necessita de moradia, passará a encher os bolsos da especulação imobiliária e se tornará reserva de valor para uma burguesia abastada que investiu pesado nas expectativas das parcerias público-privadas, que realizaram as obras não por amor à pátria ou ao espírito olímpico, mas de olho nas oportunidades de negócios que tal relação promíscua sempre proporciona.
A Vila Olímpica constitui o “pulo do gato” de uma burguesia ascendente que não cabe mais em Jacarepaguá, não se identifica com Copacabana e nem tem dinheiro pra morar em Petrópolis e trabalhar no Rio. Daí a necessidade de expandir a “zona habitável” na própria zona oeste. Isto implicava, por exemplo, na remoção da Vila Autódromo e de todos os bolsões de pobreza que pudessem “contaminar” o novo empreendimento e subvalorizá-lo. Foram 67 mil desalojados, do Centro a Deodoro, passando pela Barra da Tijuca e zona portuária.
O entendimento do sociólogo Antonio Engelke, em recente artigo a respeito, é bastante ilustrativo ao frisar que em outras cidades que sediaram os jogos, “a construção da Vila Olímpica foi pensada como uma forma de recuperar áreas urbanas carentes de modo a deixar algum legado substantivo para a população”. Em Londres, por exemplo, as estruturas removíveis foram reaproveitadas para a construção de habitações populares em áreas degradadas que rapidamente se transformaram. Aqui, até as vigas da perimetral, pesando toneladas, sumiram sem deixar vestígios, a periferia foi envelopada aos olhos do circunstancial visitante estrangeiro e… vida que segue. Do “bota abaixo” de Pereira Passos ao “Remoção Já” de Eduardo Paes já se vão mais de 100 anos. O tempo passa, os problemas aumentam e as soluções continuam as mesmas.