• O fantasma de Perón no drama argentino

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  • 28/10/2023 08:00
    Por Gastão Reis

    A Argentina peronista é um fenômeno (ou um carma?) que desafia o bom senso. Meu saudoso pai certa vez me disse que nas décadas de 1930 e 1940, no Rio de Janeiro, a referência de país que ia de vento em popa era a Argentina. As mazelas republicanas do Brasil eram comparadas aos bons ventos recebidos pelos hermanos, que “gentilmente” se referiam a nós como los macaquitos, numa arrogância de racismo explícito. Não obstante, eram comuns frases do tipo: “Porque na Argentina é assim…”. E lá vinham os elogios que lhes fazíamos. A comparação como os EUA só surgiu após a Segunda Guerra Mundial.

    Foi então que subiu ao poder Juan Domingo Perón, e lá ficou como presidente eleito e reeleito de 1946 a 1955. Ele fundou o Partido Justicialista, baseado em seu peculiar modo  de pensar. Depois de um longo exílio na Espanha, ele conseguiu a proeza de ser eleito presidente, mais uma vez, em 1973, tendo falecido em julho de 1974. Foi substituído por sua vice, Isabelita. Ela foi de rumbeira a presidenta, como relembrou o irreverente Pasquim, mui-tos anos depois, em matéria publicada sobre o permanente drama argentino.

    O então existente jornal carioca “Correio da Manhã”, em sua edição de 29 de setembro de 1955, logo após a derrubada de Perón, estampava a seguinte manchete: “Inacreditável a fortuna encontrada na residência de Perón”. Dava um total de 20 milhões de dólares em dinheiro vivo (mais de 200 milhões hoje), barras de ouro e outros bens móveis. Viveu um longo exílio na Espanha de quase duas décadas antes de voltar à Argentina, de fraca memória, para mais um mandato presidencial. Tais volteios políticos relembram os do tango.

    Diferentemente do ditador Getúlio Vargas e do fato de não ter enfiado a mão em dinheiro público como Perón, existe certo parentesco entre ambos na crença da intervenção estatal na economia. Embora a longa sombra de Vargas nos incomode ainda hoje, ela está longe da de Perón sobre os argentinos. Nem mesmo a então pujante agricultura argentina tem hoje o mesmo fôlego do agronegócio brasileiro, que nos garantiu reservas internacionais invejáveis, ao passo que a Argentina está com reservas negativas, segundo alguns analistas.

    Certamente não é bom para o Brasil ter uma Argentina a seu lado nas condições em que ela se encontra atualmente. Após o primeiro turno das eleí-ções presidenciais, haverá um segundo preocupante. Vai oscilar entre mais peronismo e a negação extremada do peronismo do candidato da direita radical, Javier Milei. Suas propostas vão na linha de não aceitar nem mesmo o Estado necessário. Pior: pretende dolarizar a economia novamente, experiência que já deu errado, fechar o Banco Central e colocar em segundo plano as relações comerciais com o Brasil, seu maior parceiro comercial, y otras cositas más…

    Acredito que Javier Milei deveria dar uma freiada de arrumação e se inspirar na política econômica do ministro da Economia da então Alemanha Ocidental, Ludwig Erhard, logo após a Segunda Guerra Mundial. Pragmático, lançou uma nova moeda, não de dolarização, aboliu as políticas de fixação de preços e controles da produção vigentes durante a guerra. Sua proposta era abrir as portas para dar condições ao mercado de funcionar, que parece ser a principal pauta de Javier Milei.  Esta seria o cerne sine qua non para destravar a Argentina, sempre em crise.          

    Estritamente nessa linha, Milei poderia ser um instrumento poderoso para exorcizar o fantasma do peronismo que assombra a Argentina por mais de 2/3 de século. Nesse meio-tempo, o perigo mora em seu destempero emocional, que nos leva de volta aos passos pirotécnicos do tango a ponto de tecer críticas grosseiras ao papa num país majoritariamente católico. Coisa de quem quer perder votos. E não poucos.

    Seu opositor no segundo turno, o atual ministro da Economia, Sergio Massa, em sua curta gestão no governo, conseguiu piorar ainda mais a inflação, que está batendo em 138% anualizada. Tal recrudescimento não é nada alvissareiro para o que poderá ser seu governo de perfil peronista. Parece a reedição do (mau) conselho dado por Perón ao presidente do Uruguai quando ainda estava no poder. Disse-lhe que a despeito da posição contrária dos economistas, ele deveria atender sempre – e mais ainda! – aos anseios da população. Triste sina de populismo inflacionário explícito, que acaba funcionando contra todos, em especial os mais pobres.

    Nem mesmo Perón, ao vivo e a cores, em seu retorno, em 1973, conseguiu o milagre esperado. O triste espetáculo ocorrido no Aeroporto de Ezeiza era mau prenúncio. Peronistas, que iam da extrema esquerda à extrema direita, numa elasticidade ideológica inimaginável, se desnetenderam à bala na recepção que lhe deram. Não foi o samba do crioulo doido, mas sim o tango dos argentinos endoidecidos.      

    Na verdade, no período em que Perón esteve no poder, logo após a segunda Guerra Mundial, a Argentina possuía grandes reservas internacionais. Chegou mesmo a fazer um empréstimo à Espanha devastada pela guerra civil de 200 milhões de dólares, equivalentes hoje a 2 bilhões da moeda americana. Foi também um período de benesses sociais a rodo que não se sustentaram pouco depois. Nesse meio tempo, a fortuna que amealhou no exterior lhe permitiu um exílio dourado na Espanha de quase duas décadas.

    A lição que fica são os efeitos devastadores do populismo a longo prazo e uma visão de mundo dos hermanos, interna e externa, em que os inimigos estariam sempre a postos para tirar proveito da Argentina. Em relação ao Brasil, há sempre o receio de vamos engoli-los. É uma mentalidade de jogo de soma zero em teoria dos jogos. Em português claro: para alguém ganhar, outro tem que perder. Visão estática sobre um bolo que não cresce. Mas quando ele cresce, todos podem ganhar, ainda que as fatias de ganhos possam diferir um pouco. O importante é que todos podem se beneficiar. 

    Enquanto subsistir esse clima de desconfiança aguda entre argentinos e em relação aos parceiros externos, é difícil imaginar um futuro próspero para a Argentina. 

    “Dois Minutos com Gastão Reis:  “A cooperativa e o mercado”.

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