• O espelho do elevador

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  • 19/06/2017 18:55

    Era domingo e fazia sol. No início da manhã, peguei o elevador no nono andar com destino ao térreo. No sétimo, ele parou. A porta abriu timidamente, vi apenas um rosto por uma fresta:

    – Pode entrar. Estamos descendo…

    A porta foi aberta um pouco mais, deu para ver um senhor com roupa de trabalho e com um crucifixo no peito:

    – Bom dia, professor!

    – Bom dia!

    – O senhor não está me reconhecendo?!

    – Não! Mas com certeza já o vi antes. O seu rosto me parece familiar. Mas me foge a lembrança.

    – Vocês tiveram na missa em que fui crismado na obra do Padre Quinha! – Ele colocou o pronome no plural, porque a minha esposa estava ao meu lado.

    – Ah! Agora lembro…

    – Parei de beber. Estou na sobriedade. Já comprei a minha casinha! Estou aqui fazendo uma mudança. Agora trabalho direto. Abandonei a cachaçada…

    Antes de chegar ao térreo, só tive tempo de parabenizá-lo. E pedi que continuasse na sobriedade, porque ele é uma das provas concretas da obra do Padre Quinha.

    Estávamos descendo para ir à missa, compromisso matinal aos domingos: agradecer a Deus pela semana vivida. Esse encontro no elevador quebrou a minha rotina dominical e me levou a pensar ainda mais na situação das cracolândias que se espalham pelo país. Tenho vários depoimentos gravados de dependentes químicos que abandonaram o vício por meio do trabalho da Oficina de Jesus e da Pastoral de Rua. Conheço vários que já estiveram no fundo do poço, mas reconquistaram a dignidade e hoje estão reinseridos na sociedade com o apoio da família e com a ajuda de voluntários que acreditam no amor como resgate da vida.

    Confesso que me incomoda muito ver tantas pessoas perambulando pelas ruas, escravizadas pelo vício. Ninguém sai dessa sozinho. É preciso que haja um trabalho de resgate para reintegrá-las à sociedade. Não podemos desistir delas nem condená-las ao ostracismo. Lembro o dia em que o Padre Quinha me disse:

    “A maior parte das pessoas que está na rua tem o vício do álcool. E por estarem escravizadas, não têm consciência do que precisam. Portanto, é necessário um período na sobriedade para voltar a pensar na própria vida e reestruturá-la. 

    Parece que na rua, elas não projetam nada em termos de futuro. Por isso que a Oficina de Jesus não fica naquele lema: ‘se você quer parar de beber o problema é nosso, mas se você quer continuar na bebida o problema é seu’.

    Nós queremos entrar naquela consciência, conscientizá-lo de que o melhor para a vida dele é a sobriedade. Quando a pessoa está escravizada pelo vício, não consegue saber o que é melhor para ela. É claro que a pessoa que busca ajuda por vontade própria tem maior êxito. É mais fácil ajudá-la. Mas há pessoa que, no estágio em que se encontra, não consegue dar esse primeiro passo. Por isso é preciso carregá-la pela mão. Através do carinho, do amor, com paciência, obtém-se a confiança dela. E por amizade, por afinidade, pela perseverança é que se consegue que ela veja, na sobriedade, uma alternativa de mudança, uma luz para a sua própria vida. Essa é uma característica do trabalho da Oficina de Jesus: ir até ao irmão que está precisando de ajuda, não ficar esperando que ele venha nos procurar.” 

    E quanto ao espelho do elevador, quero dizer apenas que me divirto, porque muitos entram e primeiro olham para o espelho, falam “bom dia” mecanicamente, nem olham para quem está ao lado. É a realidade do anonimato da vida urbana. Há os que se preocupam somente com a própria imagem. Não conseguem ver o próximo.

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