O equívoco (fatal) de Raymundo Faoro
Raymundo Faoro é autor de um clássico intitulado “Os Donos do Poder – Formação do Patronato Político Brasileiro”. Não despertou maior entusiasmo no lançamento. Tempos de JK em que a confiança no Estado estava em alta, e a opinião pública via com bons olhos a intervenção do governo da economia. Exatamente, a “doença” que, a longo prazo, decepciona por não dar conta do recado. A visão de Faoro está em linha, em alguma medida, com a de José Guilherme Merquior e a de Roberto Campos. Este último no livro, “Lanterna na Popa”, que carrega no título o bom humor de quem sabe rir de si mesmo.
Faoro nos diz que herdamos dos portugueses nossas mazelas. Ele afirma que os arranjos institucionais montados reforçariam as fórmulas estamentais e patrimoniais que caracterizam a formação do Estado português. Sem dúvida, aqui tem um lado fatalista de que Faoro é acusado com razão. A burocracia colonial não dispunha de instrumentos operacionais que a fizesse funcionar a contento. Os tempos coloniais funcionaram bem mais ao jeito das regras de mercado defendidas por Adam Smith.
Faoro em seu livro passa um tanto batido sobre a tradição secular dos concelhos com “c” em que a autonomia local funciona com graus de liberdade consideráveis tanto na área administrativa municipal quanto na capacidade de cobrar impostos locais e ainda nas eleições regulares, a cada três anos, entre os homens livres. Essa autonomia local tem algo de feudal. De mais a mais, a vastidão de território dificultava sobremaneira o controle de Coroa portuguesa.
Não só isso, a disposição tenaz dos colonos de atuarem livremente na esfera econômica lhes garantiu um notável crescimento econômico a ponto de se aproximarem da renda per capita americana no mesmo período, segundo as pesquisas mais recentes.
Ao longo livro, Faoro menciona, com frequência, a intervenção da Coroa na esfera econômica em benefício próprio. Quase não faz menção ao que seria fundamental, ou seja, à história comparativa. Praticamente, todas as nações europeias que tiveram colônias usaram de seu poder discricionário em benefício próprio. A Inglaterra, por exemplo, criou imposto sobre o sal na Índia, contestado por Ghandi, e sobre o comércio do ópio na China, que, durante certo período, chegou a responder por cerca de 1/6 (um sexto) das receitas do Tesouro inglês. Bélgica, no Congo Belga, e assim por diante.
A visão de Faoro quanto às capitanias hereditárias, sob o comando da Coroa, acentua o papel do estamento burocrático em sua implantação. Curiosamente, não enfatiza que apenas duas prosperaram, São Vicente, em São Paulo, e Pernambuco. As demais foram um grande prejuízo para seus donatários, que tiveram de lidar com todo tipo de imprevistos típicos de regiões tropicais. A ocupação posterior se deu, obviamente, em outras bases.
Interessante também é a análise de Faoro sobre os gabinetes do Império. Cita situações em que D. Pedro II teria concorrido para a retirada de gabinetes: 1843, 1859 e 1868. (5) E conclui: “Aí está um rei que reina e governa” sem se perguntar como D. Pedro II se comportava normalmente. A atuação dele, quase sempre, foi muito mais de vigilância do que de interferência. Saía mesmo das reuniões ministeriais com a frase: “Agora, a decisão é com os senhores”.
Cabe aqui relembrar o sorites (arrazoado lógico) de Nabuco, que José Murilo de Carvalho copia, adaptando, para ressaltar o fato de não termos um parlamentarismo como deveria ser. Fosse ele puro, o Primeiro-Ministro no poder faria novas eleições e, via manipulação, reelegeria o seu grupo, perpetuando-o no poder, motivo de tantas revoltas e revoluções oriundas dessa situação na América Hispânica. Ao indicar o líder da oposição para conduzir as eleições, Pedro II forçava a rotatividade dos partidos em função do poder de quem as conduzia, provocando a alternância entre liberais e conservadores no poder, um requisito indispensável à boa prática democrática.
Faoro descreve ainda a mecânica das campanhas políticas assim: “A peregrinação eleitoral forma os vínculos do futuro deputado, não ainda por escolha mas por adesão, homologados na solidariedade ao mando local, sem amor a programas, a propósitos, ou a reivindicações nacionais”. Na verdade, o Prof. William Summerhill, em sólida pesquisa, baseada nas atas das sessões da Câmara, sobre os partidos Conservador e Liberal, na última década do Império, nos diz que eles dispunham de programas e votavam de acordo com eles. Trata-se de um teste que os atuais partidos da república não passariam nele.
Por fim, o equívoco fatal de Faoro ao se posicionar do lado errado sobre a crise militar que ocasionou o golpe de 15 de Novembro de 1889. E teve efeito devastador sobre sua obra ao afirmar (pág. 560): “Ouro Preto (último Primeiro-Ministro do Império) era bem o homem do Segundo Reinado, com todos os preconceitos à flor da pele contra a presença do Exército na política”.
Na verdade, era pós-conceito, pois os políticos do Império, bem como D. Pedro II, tinham horror em ver no Brasil o mesmo filme trágico dos países de colonização hispânica desde o início do século XIX: a maléfica presença de seus militares da política, tão lamentável desde então. Não só isso, o Brasil estava na boa companhia de países que vedam a participação política dos militares. Isto inclui, ontem e hoje, países europeus em geral e países de língua inglesa.
Para Faoro, Ouro Preto não soube contornar a crise militar, que era, de fato, um triste espetáculo de indisciplina castrense ancorada no positivismo de Augusto Comte. Esta visão conquistou corações e mentes de militares e civis com fortes pendores autoritários. A máxima de Comte soava como música para ouvidos golpistas: “Assim como não há liberdade em física e química, também não deve havê-la em política,onde é preciso implantar uma ditadura científica”.
Os males advindos dessa longa participação dos militares na política estão bem documentados ao longo de toda a história republicana brasileira. E dispensa comentários dado o vulto dos malefícios causados ao País. Até hoje!
“Dois Minutos com Gastão Reis: Militares na política: 1 e 2”.