• O capitalismo vigente: tomado pela pulsão de morte?

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  • 17/12/2023 08:00
    Por Leonardo Boff

    A COP28 realizada em Dubai, nos Emirados Árabes, terminou como terminaram as anteriores: com apenas uma conclamação à redução dos combustíveis fósseis; mas se eliminou a expressão de “eliminação progressiva” do uso do petróleo, o que deixa o campo aberto para o seu uso e exploração. Importa notar que os presidentes dos países mais decisivos nesta temática, dos USA e da Rússia não se fizeram presentes. No entanto aumentou o número de lobistas das empresas de petróleo, gás e carvão.

    Como notou uma analista brasileira (Cora Rónai), “esta COP28 é um tapa na cara da Humanidade, uma gozação com quem de fato se preocupa com os efeitos das nossas ações sobre o planeta” (O Globo, 7/12, segundo caderno, 8). Efetivamente os milhares lá presentes não mostraram a sensibilidade necessária para o drama que significará o aumento do aquecimento do planeta, beirando, dentro de pouco, a dois graus Celsius ou mais. O lucro das empresas, a lógica sistêmica da competição sem qualquer laivo de cooperação efetiva, o continuado assalto aos bens e serviços naturais, a flexibilização das leis que limitam as intervenções na natureza e o enfraquecimento dos controles legais em sociedade dominadas pelo sistema neoliberal-capitalista, fazem com que não se mude de rumo, no máximo, façam-se correções internas ao sistema, que são como uma espécie de band-aids em cima das feridas sem que se atacam as causas delas.

    Mantido o sistema do capital com sua dinâmica insaciável e sua cultura cobrindo todas as esferas e mais ainda a “Grande Transformação” (Polaniy) de uma sociedade com mercado para uma sociedade de total mercado, tendencialmente tornarão o planeta inabitável. Já há anos o geneticista francês Albert Jacquard (J’acuse l’économie triomphante, 1986) notava o caráter suicida do sistema capitalista, sua  pulsão de morte, pois se funda sobre a exaustão das condições que garantem vida, cujo motor é a competição que devora sem piedade seus concorrentes sempre na perspectiva de mais ganhos monetários.

    Talvez esta pequena história vinda do Iraque, destruído por Bush e aliados numa guerra injusta, a partir de 2003, nos possa iluminar acerca dos riscos que se apresentam à nossa frente.

    Conta-se que “um soldado da antiga Bassora, na guerra contra o Iraque, devastada pelo exército norte-americano, cheio de medo, foi ao rei e lhe disse: “Meu Senhor, salva-me, ajuda-me a fugir daqui; estava na praça do mercado e encontrei a Morte vestida toda de preto que me mirou com um olhar mortal; empresta-me seu cavalo real para que possa correr depressa para Samara que fica longe daqui; temo por minha vida se ficar na cidade”.

    O rei fez-lhe a vontade. Mais tarde o rei encontrou a Morte na rua e lhe disse: “O meu soldado estava apavorado; contou-me que te encontrou e que tu o olhavas de forma estranhíssima”. “Oh não”, respondeu a Morte, “o meu olhar era apenas de estupefação, pois me perguntava como esse homem iria chegar a Samara que fica tão longe daqui, porque o esperava esta noite lá. De fato o encontrou-o de noite lá e deu-lhe o abraço da morte”.

    Esse conto se aplica ao atual momento. Entrevemos a morte, o fim de nosso tipo de mundo assentado na superexploração da natureza. Mas não diminuímos a aceleração do crescimento ilimitado, mesmo que as ciências nos garantam que já tocamos os limites suportáveis da Terra e que ela não aguenta mais. A voracidade consumista dos países opulentos, geralmente situados no Grande Norte, está exigindo mais de uma Terra e meia para atender as suas demandas.

    Temos pouco tempo e menos ainda sabedoria. Inauguramos já a nova fase da Terra, em ebulição e superaquecida (o antropoceno, o necroceno e o piroceno). Os próprios climatólogos, em sua maioria, se transformaram em tecnofatalistas e resignados. A ciência e a técnica, testemunham, chegaram atrasadas demais. Não podemos mais deter o novo curso da Terra em aquecimento. Podemos, sim, advertir a humanidade pela chegada cada vez mais frequente dos eventos extremos e mitigar seus efeitos danosos mas nos escapa a possibilidade de evitá-los.

    As consequências para a inteira humanidade, particularmente, para os países insulares do Pacífico, ameaçados de desaparecer e especificamente para os mais desassistidos e pobres serão de gravidade, maior ou menor, dependendo das regiões. Mas milhares serão vítimas, deverão emigrar, pois seus territórios se tornaram demasiadamente quentes, quebraram-se as safras, campeia a fome e a sede, crianças e idosos não conseguem se adaptar e acabam morrendo. Tais fenômenos obrigarão os planificadores a redefinir o traçado das cidades, em particular, as situadas às margens dos oceanos cujas águas subirão significantemente.

    Sirvam-nos exemplos corriqueiros. Uma vez lançada, uma ogiva nuclear, vinda de grande altura, já não pode ser detida. Rompidos os diques da mineradora Vale em Brumandinho-MG, torna-se impossível deter a avalanche de milhares de toneladas de dejetos, barro e água que, criminosamente, vitimaram 172 pessoas e arrasaram a região.

    É o que está ocorrendo com a Terra. A “colônia” humana em relação ao organismo-Terra está se comportando como um grupo de células cancerígenas. Num dado momento, perderam a conexão com as outras células, começam a se replicar caoticamente, a invadir os tecidos circundantes, a produzir substâncias tóxicas que acabam por envenenar todo o organismo. Não fizemos isso, ocupando 83% do planeta?

    O sistema econômico e produtivo se desenvolveu já há três séculos sem tomar em conta sua compatibilidade com o sistema ecológico. Hoje, tardiamente, nos damos conta de que ecologia e modo industrialista de produção que implica o saque sistemático da natureza são contraditórios. Ou mudamos ou chegaremos à Samara, onde nos espera algo sinistro.

    Todos estes problemas exigiriam uma governança global, para pensar globalmente, soluções globais. Não amadurecemos ainda para esta exigência evidente. Continuamos vítimas do soberanismo obsoleto de cada nação e, desta forma, cegos, engrossamos o cortejo daqueles que caminham na direção da vala comum. Oxalá despertemos a tempo.

    **Leonardo Boff escreveu: Terra Madura: uma teologia da vida, Planeta, São Paulo 2023; Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade universal? Vozes 2022.

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