• O Bruxo do Cosme Velho: Machado de Assis maior ainda

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  • 27/jul 08:00
    Por Gastão Reis

    Não se sabe bem a razão de Machado de Assis ostentar o cognome de o Bruxo do Cosme Velho. Uma das versões é que a vizinhança o viu queimar algumas cartas em um caldeirão no segundo andar da casa onde morava no Cosme Velho, tradicional bairro do Rio de Janeiro. Mas, pelo jeito, ele tinha mesmo algo de bruxo em função do que vou expor ao longo deste artigo.

    Machado de Assis, qual os gatos, se não teve sete, pelo menos duas vidas, ele acabou tendo. Uma foi a que viveu, em carne e osso, entre 1838 e 1908. A outra tomou forma, muitas décadas depois, em fins do século XX e início do XXI, e se refere à obra literária que deixou, mais viva do que nunca no plano internacional. Este reconhecimento tardio de sua obra parece ter ligação com uma espécie de “bruxaria” que ele perpetrou ainda em vida, e lhe deu uma sobrevida literária em pleno fulgor nos tempos atuais.

    Não sou crítico literário, mas admirador e estudioso da obra do nosso maior escritor a ponto de ter lido “Dom Casmurro” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas” em voz alta. Sendo assim, vou me valer da excelente conferência dada pelo crítico Antonio Candido de Mello e Souza na Universidade da Flórida, em 1968, publicada em 1970 numa coletânea intitulada “Vários Escritos” pela Editora e Livraria Duas Cidades – São Paulo. Descobri o texto como uma espécie de prefácio num livro de contos de Machado de Assis traduzidos para o francês, intitulado “La montre en or et autres contes” (“O relógio de ouro e outros contos), publicado pela Éditions Métailié (2015).

    Mello e Souza nos informa que Machado de Assis teve uma vida relativamente tranquila a despeito da origem humilde, pobreza e cor da pele, mulato que era, filho de mãe portuguesa branca, nascida nos Açores, e pai liberto de origem africana e pintor. Na verdade, teve relativa facilidade em sua vida pública graças aos relacionamentos que cultivou desde muito cedo. Foi íntimo dos dois filhos do Conselheiro Nabuco, Sizenando e Joaquim, jovens talentosos. Muito cedo o talento de Machado de Assis foi reconhecido, e aos 50 anos já era considerado o maior escritor do País, exceto pelo crítico Silvio Romero, em quem o preconceito e o racismo falaram mais alto.

    É impossível resumir o brilhante texto de Mello e Souza em apenas duas laudas. Vou-me ater aos pontos mais interessantes e importantes.

    O primeiro deles é explicar, digamos, esse anonimato de Machado por tanto tempo. Nossa língua, o português, ainda é pouco conhecida hoje, não obstante seja o berço de um Fernando Pessoa, poeta maior no contexto mundial, assim reconhecido por Jean-Paul Sartre, e de um Saramago, ganhador do Nobel de literatura, em 1998. Por volta de 1900, ela representava menos ainda na cena política internacional. Mesmo em meados do século XX, era lamentado o fato, por exemplo,de os quadros de humor de Millôr Fernandes não serem escritos em inglês, portal de entrada para a fama planetária.

    Mello e Souza nos chama a atenção para o fato de que o verbo literário é mais visível nas obras dos grandes escritores, que são grandes por sua extrema riqueza de significados. É isto que permite a cada grupo e a cada época de ali reencontrar suas obsessões e suas necessidades de se exprimir. Aqui está o segredo de a obra do genial Machado ter sobrevivido e se levantado do quase-túmulo a que ficou relegada por bom tempo no plano internacional.  

    Seu modo de escrever concebido como o da “bela linguagem”, na verdade, ia além, abrindo espaço para a ironia sutil, o estilo refinado, que evocam as noções da ponta de uma faca, aguda e penetrante, e de delicadeza e força, entrelaçadas. Está presente também o pessimismo, ou seja, o grande desencanto que aflora de todas as suas histórias, contos e romances. E ainda o humor de tipo inglês, outra característica que marca sua obra, em sua capacidade de rir de si mesmo, ao se referir, por exemplo, aos cinco ou seis leitores que determinado livro seu teria.            

    Vamos agora à virada ocorrida na avaliação de sua obra, em que ele adquire estatura de um escritor internacional. Em determinado momento, ele passa a ser percebido não mais como o “irônico ameno”, e nem mesmo o elegante cinzelador de frases convencionais e acadêmicas; passa a ser o criador de um mundo paradoxal, o experimentador, o cronista desolado do absurdo, da angústia existencial. Neste caso, surge como precursor do existencialismo. Para Roger Bastide, ele era o mais brasileiro de nossos escritores por dar um caráter universal ao Brasil ao explorar, no nosso contexto, temas essenciais.

    Na obra de Machado, segundo Mello e Souza, é ressaltada a relação entre o fato real e o fato imaginado, que será um dos eixos do grande romance de Marcel Proust, em que ambos a analisam principalmente em função do peso do ciúme nas relações humanas. Em sua obra, o real pode ser o que parece ser real. A ambiguidade gneseológica se junta à ambiguidade psicológica para dissolver os conceitos morais e instaurar um mundo escorregadio, onde os contrários se tocam e se dissolvem.

    Este sentimento profundo, ainda transcrevendo Mello e Souza, da relatividade total de nossos atos, da impossibilidade de os definir de maneira adequada, dá lugar ao sentimento do absurdo, do ato sem origem detectável e dos julgamentos infundados. Isto ecoa a futura obra de Kafka, antes mesmo deste; e antecipa o ato gratuito de Gide, que já estava presente na obra de Dostoiévski, e precursoramente na obra do próprio Machado.

    Indo mais fundo ainda, a obra de Machado encerra e antecipa conceitos atuais como o de alienação e de reificação. Mas, curiosamente, o texto de Mello e Souza, que nos fornece provas da genialidade de Machado como precursor de diferentes correntes literárias, não menciona o caso do realismo mágico de escritores latino-americanos de língua espanhola. O livro “Memórias Póstumas de Braz Cubas” traz elementos típicos de realismo mágico, como o defunto que fala, narra e escreve.

    Em suma, o bruxo se tornou maior ainda. Figura no grupo restrito dos grandes escritores da humanidade. Receberia o prêmio Nobel, vivo fosse.   

    “Dois Minutos com Gastão Reis: Duas Lições de Machado de Assis”.

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