• O Brasil profundo no Festival de Roterdã

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  • 03/02/2021 07:32
    Por Mariane Morisawa, especial para o Estadão / Estadão

    O Brasil são vários. E suas multiplicidades estão bem representadas por Madalena, de Madiano Marcheti, e Carro Rei, de Renata Pinheiro, os dois participantes nacionais no Festival de Roterdã, que ocorre até domingo, 7, na cidade holandesa. Em comum, têm vozes originais, de fora do eixo Rio-São Paulo e entranhados nos ambientes que retratam.

    Marcheti vem do norte de Mato Grosso. Sua região, Centro-Oeste, raramente é vista nas telas, a despeito de sua importância na economia brasileira: é palco do agronegócio, especialmente o cultivo da soja, e também da destruição dos recursos naturais, seja a Floresta Amazônica ou o Pantanal. “Queria falar das dinâmicas sociais desse lugar”, disse o diretor em entrevista ao Estadão, por telefone. “Eu sentia muita falta de representação desse lugar no cinema brasileiro.” É o espaço, então, com a cidade cercada de plantações por todos os lados, o personagem principal do longa de estreia de Marcheti.

    Mas ele também queria falar sobre ser uma pessoa LGBTQIA+ nesse lugar, baseado em sua experiência pessoal. “Cresci numa região muito conservadora”, contou o diretor, criado em Sinop. Conforme a pesquisa e o processo de escrita do roteiro avançaram, Marcheti decidiu focar na questão trans. “Porque no espectro de violência das pessoas LGBTQIA+, as trans são as que mais sofrem, às vezes até perdendo a vida. O filme acaba focando no que eu acredito que é a pior consequência dos impactos das dinâmicas sociais opressivas, no caso contra as pessoas trans.”

    A Madalena do título é uma mulher trans que desaparece. Os outros personagens – a hostess de boate Luziane (Natália Mazarim), o filho de fazendeiro Cristiano (Rafael de Bona) e a enfermeira trans Bianca (Pamella Yule) – têm algum tipo de relação com Madalena. Mas ela mesma só aparece como um espectro que paira na cidade. “É um filme bastante estranho porque são três histórias para falar de um lugar e, ao mesmo tempo, há uma pessoa totalmente ausente do filme, mas que está guiando a narrativa de alguma maneira, porque ela que está conduzindo a história por meio desses três personagens”, explicou o cineasta.

    Sua preocupação era jamais fugir do assunto da violência – o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo, 175 apenas no ano passado, segundo relatório da Associação Nacional das Travestis e Transexuais. Mas não explorar de maneira sensacionalista nem esteticamente apelativa. “Queria falar disso sem necessariamente expor”, disse Marcheti. Ele prefere mostrar as pessoas trans em vida. Gente como Bianca e suas amigas, que lidam com as dores das perdas, mas também trabalham, sonham, se divertem, brigam, como quaisquer outras pessoas – porque pessoas são.

    A paisagem de Carro Rei é outra: Caruaru, cidade média do interior de Pernambuco. O filme surgiu da observação da diretora Renata Pinheiro de como os carros tomaram os espaços que eram dos pedestres. “Realmente, existem planos urbanísticos que privilegiam os automóveis”, disse a diretora ao Estadão, por telefone. “A gente sabe o quanto eles são importantes na vida do brasileiro. E não deveriam, porque é um bem privado. Deveríamos privilegiar o transporte público.”

    Somou-se a isso seu fascínio pessoal com objetos que ganham vida. E assim surgiu a fábula do menino Uno (Luciano Pedro Jr.), nascido dentro de um carro desse modelo e criado em meio à pequena frota de táxis de seus pais. Depois de um desastre, Uno é separado de seu carro-manjedoura, mas, com ajuda de seu tio Zé Macaco (Matheus Nachtergaele), acaba arrumando um jeito de transferir sua habilidade de se comunicar com a máquina para outros automóveis.

    O intuito é o de ajudar os moradores locais com carros mais modernos, contornando a necessidade de adquiri-los de grandes montadoras internacionais. Mas muitas boas ideias acabam se desvirtuando. “O filme quer falar que todos podemos trilhar um caminho errado”, explicou Renata, que começou a escrever o roteiro há sete anos, mas se viu influenciada pelos acontecimentos recentes no Brasil. “Eu e meu parceiro e corroteirista Sergio Oliveira sempre fazemos um comentário da atualidade. Nesse caso, da atualidade mundial, porque essa ida para a extrema direita que aconteceu no mundo marca o filme e marca uma cidade média brasileira, bem América Latina, efervescente, cheia de gente, comércio, carros. Mas é o mesmo que acontece em outros países.”

    O filme fala de um movimento social, espontâneo, que vai tomando uma forma estranha, que trai a origem daquela busca por justiça. “Muitas pessoas se iludem. São pessoas legais, bacanas, não fazem mal a ninguém, mas acreditaram numa mentira, num plano de governo com ideias mentirosas e que vão prejudicar completamente.” Ela deixa claro que o filme não é sobre o atual presidente, mas fala de algo maior.

    Carro Rei também é sobre a tecnologia que é parte integrante de nossas vidas. “Essas máquinas não vão deixar de existir, elas são nossa prole”, afirmou. “O importante é que não nos desumanizemos no processo.”

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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