• O apagão (proposital) da responsabilidade individual

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  • 25/02/2023 08:00
    Por Gastão Reis

    Um belo dia, resolvi passar os olhos na atual constituição portuguesa. E, para minha surpresa, observei que para cada direito do cidadão(ã) português(a) foi explicitado, no corpo da Carta, o dever que lhe era correspondente. Não é comum este tipo de chamamento à responsabilidade individual em textos constitucionais. A nossa, de 1988, é um festival de direitos, como constatou Roberto Campos, em que a palavra dever pode ser contada nos dedos de uma mão. Evidente desequilíbrio. Ao comentar o fato com uma colega de trabalho do meu filho, portuguesa, ela deu sua aprovação com convicção.

    Diferentemente de nós, que estamos colecionando, em maior ou menor grau, décadas perdidas desde 1980, Portugal, no período pós-salazarista, se achou e vem conseguindo contabilizar taxas de crescimento expressivas do PIB, bem acima das nossas. E tudo isso sob um regime parlamentarista em que a responsabilidade individual dos governantes é cobrada com frequência pelo Parlamento e pelo presidente da República. Este é obrigado, pela constituição, a sair do partido que o elegeu porque passa a representar a Nação Portuguesa, e não mais o partido A ou B. 

    Diferentemente de nós, Portugal, durante o período de monarquia constitucional, cuja Carta, outorgada em 1826 é a mais longeva (72 anos), pelo nosso D. Pedro I, Pedro IV deles; e, mesmo após a ditadura salazarista, nunca se afastou de sua tradição parlamentarista. Nossa Carta de 1824 foi um legado de D. Pedro I, tendo sido também a mais longeva de nossa História (65 anos). O simples fato de terem durado tanto tempo, lá e cá, é a prova da qualidade de ambas. A Chefia de Estado exercida por um monarca, detentor do poder moderador, foi sem dúvida um instrumento eficaz de controle do andar de cima, jamais utilizado para oprimir o povo.

    A tradição parlamentar da Inglaterra, a mais antiga do mundo, foi sendo aperfeiçoada ao longo dos séculos, e chegou a um ponto de equilíbrio em matéria de lidar com o poder, mantendo-o sob rédeas curtas. Lord Acton, historiador inglês, foi o autor da famosa frase “Poder corrompe e poder absoluto corrompe absolutamente”. Curiosamente, Bakunin, revolucionário russo anarquista, foi na mesmíssima direção. Ele discordava de Marx, pois via em suas concepções a semente do “socialismo autoritário”. Poder, para ele, era sempre exercido por uma minoria. Em suas palavras: “Quem duvida disso não conhece a natureza humana”. 

    Além de levar muito a sério as palavras Acton, os ingleses provavelmente conheciam o que Bakunin havia dito sobre o poder nas mãos de uma minoria. O que fazer, então? Já que o poder tende a cheirar mal facilmente, a providência tomada pelo bom senso inglês através da common law (direito consuetudinário, baseado nos costumes) foi a vigilância semanal do poder, o melhor desinfetante inventado até hoje, que nós tivemos ao longo do Império, também semanalmente. O Primeiro-Ministro inglês comparece, às quartas-feiras, ao Parlamento para prestar contas dos atos de governo,e ainda tem uma audiência particular, às sextas-feiras, com a rainha (ou rei) para quem mentir é pecado mortal.

    Esta nossa moldura parlamentar, vigente entre 1822 e 1889, de fato, nos diferenciou da América Hispânica, que adotou de cara o presidencialismo, em que o presidente é simultaneamente Chefe de Estado e de Governo, vale dizer, sem um poder moderador em separado ao qual prestar contas. Deu no deu. 

    Nesta semana, tive a grata surpresa de uma ligação de um grande amigo para me dizer que estava lendo o meu terceiro livro “História da Autoestima Nacional – Uma investigação sobre monarquia, república e preservação do interesse público. Ele me pediu autorização para divulgá-lo amplamente junto à sua vasta rede de contatos por ser um texto com informações que precisam chegar ao grande público. Eu me senti lisonjeado com sua avaliação pelo respeito intelectual que lhe tenho. E dei a autorização solicitada com entusiasmo. Em breve, a edição digital estará disponível.   

    Concordei também, pelo que me disse sobre parlamentarismo, afirmando que as informações transmitidas no meu livro e nos meus artigos semanais que lhe enviei sobre o governo de gabinete lhe foram muito úteis para entender melhor as virtudes de um regime político alternativo. A nossa tradição presidencialista de 13 décadas, muito diferente da americana, que é única, nos faz sofrer da síndrome do uso do cachimbo que deixa a boca torta. No caso, a mente unidirecionada, como se não houvesse outra opção. Confesso que não chegou a ser surpresa para mim sua colocação em função de ter notado entre amigos e conhecidos a mesma situação de falta de informação sobre o tema.

    Walter Bagehot, famoso fundador da revista “The Economist” e autor do conhecido livro “A Constituição Inglesa”, criticava o sistema presidencialista por suas numerosas falhas e ausência de prestação regular de contas dos atos de governo. Dizia mais: “Governos de gabinete educam a nação, o sistema presidencialista não a educa, e pode mesmo corrompê-la”. Como diagnóstico do que aconteceu com o presidencialismo no Brasil em matéria de costumes políticos corrompidos, sua afirmação não poderia ser mais verdadeira.

    A razão de se ignorar o parlamentarismo como solução é muito simples. Este sistema de governo traz embutido nele o voto distrital puro, ou equivalente, com prestação mensal de contas dos parlamentares nos distritos eleitorais, e alguma forma de recall, ou seja, a possibilidade de revogação de seus mandatos entre as eleições. Para vereadores e deputados estaduais e federais, habituados aos maus hábitos presidencialistas de só procurar os eleitores a cada quatro anos, a proposta parlamentarista não é nada atraente.

    Dada essa situação, o eleitor parece não se dar conta de que seu desinteresse pela política é decorrente de sua impotência diante dos políticos, como se isso não pudesse ser mudado. Na verdade, é um apagão por terceiros de sua responsabilidade pessoal induzido pelo sistema eleitoral vigente. Ao tomar consciência de que terá poder sobre os políticos, sua atitude será outra. Com certeza.

    Confira: “Dois Minutos com Gastão Reis: “A Voz e a Vez do Povo

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