• O amor entre Clara e Francisco de Assis

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  • 05/06/2022 09:00
    Por Leonardo Boff

    Francisco (+1226) e Clara (+1253), ambos de Assis, são figuras das mais queridas da cristandade, das quais nós podemos realmente nos orgulhar. Os dois uniam três grandes paixões: pelo Cristo pobre e crucificado, pelos pobres, especialmente os hansenianos e um pelo outro.  O amor por Cristo e pelos pobres não diminuía em nada o amor profundo que os unia, mostrando que entre pessoas que se consagram a Deus e ao serviço dos outros pode existir  verdadeiro amor e relações de grande ternura. Precisamos superar a visão convencional que associa logo amor à sexualidade. Não é o caso que estamos narrando. 

    Havia entre Francisco e Clara algo misterioso que conjuga Eros e Ágape, fascinação e transfiguração. Os relatos conservados da época falam dos encontros frequentes entre eles. No entanto, “regulavam tais encontros de modo que aquela divina atração mútua pudesse passar despercebida aos olhos das pessoas, evitando boatos púbicos”, diz seu biógrafo Tomás de Celano.

    Logicamente, numa pequeníssima cidade como  Assis,  todos sabiam tudo de todos. Assim também do amor entre Clara e Francisco. Uma legenda antiga refere-se a este diz-que-diz-que com terníssima candura:

    ”Certa feita, Francisco havia ouvido alusões inconvenientes. Foi a Clara e disse-lhe: Compreendeste, irmã, o que o povo diz de nós? Clara não respondeu. Sentiu que seu coração começava a parar e que, se dissesse uma palavra mais, iria chorar. É tempo de separar-nos, disse Francisco. Então, tu vais à frente e, antes de vir à noite, terás chegado ao convento. Eu irei sozinho e te acompanharei de longe, conforme o Senhor me conduzir. 

    Clara ajoelhou-se no meio do caminho. Pouco depois, recuperou-se, levantou-se e continuou a caminhar, sem olhar para trás. O caminho passava por um bosque. De repente, ela se sentiu sem forças, sem consolo e sem esperança, sem uma palavra de despedida antes de separar-se de Francisco. Aguardou um pouco.  

    Pai, disse, quando nos veremos de novo? Quando o verão voltar, quando as rosas florescerem, respondeu Francisco. E então, naquele momento, algo maravilhoso aconteceu. Parecia que por sobre os campos cobertos de neve, tivesse chegado o verão e irrompessem milhares e  milhares de flores. Depois de uma perplexidade inicial, Clara se apressou, colheu um ramalhete de flores e o entregou nas mãos de Francisco”. 

    E a legenda termina dizendo:”Desde aquele momento em diante, Francisco e Clara nunca mais se separaram”.

    Estamos diante da linguagem simbólica das lendas. Mas são elas que guardam o significado dos fatos primordiais do coração e do amor. “Francisco e Clara nunca mais se separaram”, quer dizer, souberam articular seu mútuo amor com o amor a Cristo, aos pobres de tal forma que era um só e grande amor. 

    Efetivamente jamais saíram um do coração do outro. Uma testemunha da canonização de Clara diz com grazie que Francisco para ela “parecia-lhe ouro de tal forma claro e lúcido que ela se via também toda clara e lúcida como se fosse num espelho”. Dá para expressar melhor a fusão de amor entre duas pessoas de excepcional  grandeza de alma?

    Em suas buscas e dúvidas ambos se consultavam e buscavam na oração um caminho. Um relato biográfico da época conta: “Certa feita, cansado, Francisco chega a uma fonte de águas cristalinas. Põe-se a olhar, por  longos instantes, para estas águas claras. Depois, tornou a si e disse alegremente a seu amigo íntimo, Frei Leão: Frei Leão, ovelhinha de Deus, que pensas que vi nas águas claras da fonte? A lua, que se espelha lá dentro, respondeu Frei Leão. Não, irmão, não via lua, mas sim, o rosto claro de nossa irmã Clara, cheio de santa alegria, de sorte que todas as minhas tristezas desapareceram”.

    Em 2011 se celebraram os 800 anos da fundação por Clara de Assis da Segunda Ordem, a das Clarissas. O relato histórico não poderia ser mais carregado de densidade amorosa. 

    Os biógrafos da época contam: Francisco combinara com Clara que na noite do domingo de Ramos, belamente adornada,  fugisse de casa e viesse encontrá-lo na capelinha que havia construído, a Porciúncula. Efetivamente ela fugiu. Chegou à igrejinha e lá estavam Francisco e seus companheiros com tochas acesas. Alegres a aplaudiram e a receberam com extremo carinho. Francisco cortou-lhe os belos cabelos louros. Era o símbolo de sua entrada no novo caminho religioso. 

    Agora eram dois num só e no mesmo caminho. Até hoje “nunca mais se separaram”.

    Leonardo Boff foi professor de teologia no IFT em Petrópolis por 22 anos. Escreveu São Francisco de Assis: ternura e vigor, Vozes 1993; A oração de São Francisco: uma mensagem de paz para o mundo atual, Vozes 2014; com Nelson Porto, Francisco de Assis, o homem do paraíso, Vozes 1999.

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