• Nova geração do blues lida com tradição e modernidade

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  • 03/10/2021 17:15
    Por Julio Maria / Estadão

    A urgência está em seus cantos, em seus solos e em suas falas, e talvez responda parte do que pode estar por trás do surgimento de uma das mais profícuas e politizadas safras de artistas do blues. Analistas norte-americanos como o crítico de música JD Consodine, com escritos para a Rolling Stone, Jazz Times e The New York Times, publicou recentemente um longo artigo na Revista Downbeat investigando a proliferação de novas vozes negras na expressão de massa mais antiga dos Estados Unidos. “Se houve um tempo para o surgimento de um novo blues, esse tempo começou em 2020.”

    A aposta de Consodine tem lastro histórico. O blues, a grande mãe de toda a cultura norte-americana surgida a partir do final do século 19, espraiou-se sem limites, sobrepôs-se ao próprio racismo que lhe deu vida e avançou por todas as esferas, popular ou acadêmica, rural ou urbana, sem perder o que a chamada nova geração volta a sentir como um valor: a confirmação de uma existência, a certeza de um lugar. “Esta é uma sensação muito importante e lugares como o Delta do Mississippi ainda trazem muito poder a essas pessoas”, diz o escritor e pesquisador Geoff Dyer, autor, dentre outros, do livro All That Jazz.

    A fala do bluesmen da retomada pós-pandemia é muitas vezes tão forte quanto seus solos. Christone “Kingfish” Ingram está sendo considerado um ponto proeminente na linhagem que começa em Robert Johnson, passa por Muddy Waters, atravessa BB King e talvez ainda não tenha ido além de Stevie Ray Vaughan. Kingfish tem 22 anos e vem de Clarksdale, Mississippi. É visto estraçalhando guitarras desde os 10 anos e, aos 15, tocou para Michelle Obama na Casa Branca. Ao falar com Martine Ehrenclou, da publicação Rock And Blues Muse, disse que quer “trazer outros jovens negros de volta ao blues”. “Há alguns anos, quase todas as crianças que eu via tocando eram brancas, mas houve um ressurgimento e a jovem representação negra está de volta.”

    Seu novo álbum chamado 662, o código de área de sua Clarksdale, é forte e nada linear. King tem uma voz expansiva e confiante, consegue atualizar o discurso do blues com assuntos de sua geração e cria conexões mais interessantes quando apanha toda essa carga e vai às origens, em temas como 662 e That’s What You Do. Mas ainda é cedo para que seja colocado um cetro em suas mãos. Kingfish procura por uma sonoridade equilibrada e tenta desativar aos poucos o circuito que faz com que todas as suas ideias sejam amparadas em solos virtuosos. Há uma exaustão de forma apontada pela nova geração do blues que não quer mais ser simulacro de Johnny Winter, Rory Gallagher e Stevie Ray. E olha que é o próprio King quem está dizendo, na entrevista à R&B Muse: “Até eu cheguei ao ponto em que, hoje em dia, se eu entrar em um clube e o guitarrista tocar mil notas por minuto, vou ficar cansado. No final da noite, tem que haver um equilíbrio para que o público sinta algo”.

    O “guitarracentrismo” do blues de Kingfish, mas também de Joe Bonamassa, de Kanye Wayne Shepherd e de uma forma de pensar blues estabelecida por décadas, não nasceu com o blues. A ideia de supremacia do instrumento é relativamente recente na história do gênero e foi instalada sobretudo pelos guitarristas brancos a partir da era da redescoberta dos velhos bluesmen norte-americanos nos anos 60 feita por roqueiros ingleses como Eric Clapton, Keith Richards e Pete Townshend. A espetacularização de uma música que não nasceu como espetáculo, mas como clamor, pagou o preço dos holofotes e criou sua sedução com o vigor e o virtuosismo traficado do rock and roll. Agora, ao menos para o neoblues de Buffalo Nichols, Amythyst Kiah e até mesmo o guitarrista Marcus King, esse sistema parece esgotado.

    A filha de haitianos nascida em Nova York Leyla McCalla, ex-cantora de rua em New Orleans, tem uma voz bela e oscilante. Ela canta em francês, crioulo haitiano e inglês, e toca violoncelo, banjo e violão. Seu álbum de 2019 contesta o capitalismo, The Capitalist Blues, uma politização geracional, e tudo o que não se ouve são solos de guitarra. [DE MCCALLA]”Sua voz é surpreendentemente natural e suas configurações são elegantemente sucintas. Sua música transparente contém informações de família, memória, solidão e a inexorabilidade do tempo: pensamentos pesados tratados com o toque mais leve imaginável”, publicou, sem economizar adjetivos, o New York Times[/DE MCCALLA].

    Outra voz a ser observada, talvez a mais interessante de seu tempo, é a de Cedric Burnside. Cedric é neto do venerável RL Burnside, um bluesman do norte do Mississippi que ajudou a criar um gênero de blues, o hill country blues, baseado em canções de apenas um acorde. Uma lenda que morreu aos 78 anos, em 2005, mais pobre do que nasceu. Ao contrário do avô, Cedric vai além da forma, consegue mexer na sagrada estrutura harmônica do blues sem profanações e colocar suas próprias informações sem deixar de fazer blues. O peso de ser neto de quem é certamente sustenta tudo. Um dos críticos que o viu em ação foi fundo: “Este é o verdadeiro blues, nada dessa porcaria de aspirantes a Stevie Ray Vaughan. Não, este é o blues despojado, com guitarras e vocais rudes… Em uma palavra: perfeito”, publicou a Ink 19.

    Outros lugares

    A cantora Koko-Jean Davis não está nos radares que cobrem os limites geográficos do blues oficial. Ela nasceu em Maputo, Moçambique, e foi adotada por um casal de médicos espanhóis. A pedido de um diretor da escola, cantou pela primeira vez I’m Losing You aos 13 anos e não parou mais de ouvir Ray Charles, Otis Redding, Aretha Franklin e Ella Fitzgerald. Viveu na África até os 18 anos, migrou para estudar Literatura Inglesa nos Estados Unidos e mudou-se para o Brasil sete anos depois até partir para Barcelona. A existência de Koko no blues, que já foi acompanhada pelo grupo The Excitements e, agora, está com o The Tonics, todos de Barcelona, é outro sinal dos tempos. “Se o fato de não ser norte-americana me torna menos legítima? Boa pergunta”, ela reflete ao Estadão. E quem parece ter uma boa resposta é Geoff Dyer: “O ilegítimo sempre foi uma grande fonte de criatividade e o blues é, de certa forma, uma música ilegítima. Sua ascensão à legitimidade e, pior, à venerabilidade é uma bênção que vale tanto para o bem quanto para o mal”. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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