• Nossa história desfigurada por meias verdades

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  • 21/01/2023 08:00
    Por Gastão Reis

    O ditado latino “Historia magistra vitae est”, “História, mestra da vida”, nos alerta para a importância de conhecer o passado. E evitar tomar iniciativas destinadas a dar errado, já confirmadas pelo registro dos tempos. Um bom exemplo é a tentativa de controlar preços por tabelamento, coisa que deu errado desde Hamurabi, mais de três mil anos atrás, e com Diocleciano (302 d.C.), imperador romano, que também deu com os burros n’água. A América Latina, nessa matéria, parece desconhecer as lições da História.

    Quando tomei conhecimento da obra do renomado historiador José Murilo de Carvalho, sempre observei seu cuidado de ir às fontes primárias em suas pesquisas para os muitos livros que publicou. Sua obra me abriu os olhos para muita coisa mal contada em nossa História do século XIX, época em que o País tinha rumo. Sua familiaridade com os fatos e registros dessa época é simplesmente extraordinária. Parece que nos fala de eventos atuais.

    As fontes primárias, quase sempre, têm seus registros mais próximos dos fatos acontecidos. As fontes secundárias, por vezes, pecam por falhas de memória de quem as escreveu quando demoram a ser postas em letra de forma. E por interpretações equivocadas. Há que levar em conta ainda a mudança de perspectiva do passar do tempo que nos traz novas informações e nos faz ver com outros olhos um mesmo fato importante do passado.

    Dois outros balizadores me parecem essenciais para não nos equivocarmos na adequada avaliação dos fatos históricos. A primeira é não usar valores culturais do presente como régua de medida do passado. Pode não parecer, mas este é um erro muito comum no Brasil. O segundo é situar a análise histórica geograficamente. Ou seja, sempre lançar mão da chamada história comparativa. Um exemplo: como se situava o Brasil em determinada época em relação aos demais países na questão da escravidão? Tal providência nos evita dizer muita bobagem

    Vamos ao primeiro caso em relação ao longo passado escravista do mundo. A escravidão perdurou por quase seis mil anos, se contarmos a partir do início dos registros escritos. Faz pouco mais de um século que ela foi abolida. As mensagens indignadas nas redes sociais costumam não levar em conta essa questão. É comum ver Zumbi como o grande libertador do povo negro quando na verdade ele se comportava de acordo com os padrões de sua época, inclu-sive na África, em que a tribo vencedora vendia, após a batalha, os prisioneiros da tribo derrotada como escravos. Tanto isto era fato que o próprio Zumbi teve escravos. Não lhe passava pela cabeça que a escravidão pudesse deixar de existir como um todo. Estava preso aos usos e costumes de seu tempo. 

    Um contraponto entre ele e a Princesa Isabel nos fornece uma outra visão do tempo da escravidão. Acabar com a escravidão foi o objetivo dela desde muito jovem. Mas ela nasceu no século XIX, quando a humanidade se deu conta de que a ideia de pôr fim à escravidão passou a estar na ordem do dia. Uma ideia cujo tempo havia chegado. E ela agiu com presteza e eficiência. 

    Passou leis abolicionistas como Regente, deu guarida nos porões do palácio a negros fugidos e finalmente sancionou a Lei Áurea, que libertou 20% dos descendentes de africanos ainda escravos.  80% já eram livres. No Brasil, o processo de libertar os escravos foi levado adiante de modo paulatino e muito mais profissional do que nos EUA. Os casos de alforrias foram expressivos desde os tempos coloniais, coisa muito rara no resto do mundo. Nos EUA, além de exigir uma guerra civil, a integração social do negro foi postergada por quase 100 anos em função da doutrina marota do “iguais, mas separados”.

    A exiguidade de espaço deste artigo impede uma análise mais detalhada. Mas podemos contorná-la através de alguns exemplos dignos de nota. 

    Laurentino Gomes, em sua trilogia “Escravidão”, volume II, páginas 320 e 321, nos fornece números impressionantes relativos ao Brasil e aos EUA. Aqui, pelo censo de 1872, havia cerca de 4,2 milhões de pessoas negras ou pardas livres, número maior que os 3,8 milhões de brancos na época. Nos EUA, às vésperas da Guerra da Secessão (1861-1865), havia cerca 4 milhões de pessoas escravizadas com barreiras legais que praticamente impediam as alforrias. E ainda a segregação estrita por lei, até a década de 1960, quando os negros deslancharam o movimento por seus direitos civis.

    No meu livro “História da Autoestima Nacional”, na página 209, ressalto os seguintes números quase sempre ignorados: “Na primeira matrícula geral de escravos do censo de 1872, seu número era de 1.510.806, que caiu para 720.000, na última matrícula geral do Império, de 30.03.1887, uma queda de mais de 50% de escravos no curto período de 15 anos”. Foi uma redução de quase 53 mil escravos a menos por ano. Fica muito claro a impropriedade de se fazer o veredicto de que o Brasil foi o último país a fazer a abolição sem dizer que foi um dos primeiros, senão o primeiro, onde as alforrias prosperam sem paralelo no resto mundo. E que 80% do problema servil já estava resolvido em 1888.           

    Tais cuidados metodológicos no trato da História mencionados no início deste artigo não vêm sendo rigorosamente seguidos, abrindo as portas para as meias verdades, e até inverdades. Cito, para finalizar, o caso da historiadora Mary Del Priore, dentre outros, que afirmou que a Princesa Isabel só teria se posicionado publicamente a favor da abolição há cerca de seis meses antes de assinar a Lei Áurea. Impossível entender como ela consegue cometer tamanha injustiça, inverdade mesmo, em relação à Princesa Isabel.                                            

    (*) Assista: “DOIS MINUTOS COM GASTÃO REIS – A reação do Brasil profundo”:

                                                                                                                                                                                                                                                   

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