No Brasil, classe média afegã vai para aeroporto e abrigos na fuga do Taleban
Quando o grupo extremista Taleban tomou o controle do Afeganistão, há um ano e meio, o diplomata Shabir Ahmad, de 35 anos, se viu em uma encruzilhada. Funcionário do governo afegão em uma embaixada no Irã, ele conta que precisou decidir entre retornar ao país ou tomar um novo destino. “Eu não tinha direito de ficar no Irã, pois meu visto era político”, explica. Os diplomatas eram alvo da violência. “Fizemos campanhas contra a violação dos direitos humanos pelo Taleban em nossas missões diplomáticas. Eles disseram: ‘Se vierem ao Afeganistão, não aceitaremos vocês’.”
Com medo, Shabir solicitou visto humanitário ao Brasil e em julho desembarcou com a família no Aeroporto Internacional de Cumbica, em Guarulhos, na Grande São Paulo. Por lá, dormiram uma semana no chão – hoje, há outros 80 afegãos nessa mesma condição -, até serem encaminhados para um abrigo em Morungaba, a 100 km da capital paulista. Com o diplomata, vieram a mãe, um casal de filhos pequenos e a mulher, grávida de 8 meses quando chegaram. A caçula, Fatima, nasceu semanas depois. “É um nome comum na sociedade islâmica e também na brasileira”, diz ele, em inglês. “Ela agora está bem, é uma brasileira.”
Levantamento feito a pedido do Estadão pelo Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), cooperação entre o Ministério da Justiça e a Universidade de Brasília (UnB), aponta que 3.367 imigrantes afegãos entraram no País de janeiro a outubro deste ano – 98,9% deles pelo aeroporto de Guarulhos. O número é 13 vezes maior do que o registrado no ano passado.
A tomada do poder pelo Taleban simbolizou a perseguição a vários segmentos da sociedade afegã. As mulheres, sobretudo as ativas no mercado de trabalho, passaram a ser alvo diante da repressão promovida pelo grupo extremista. Assim como grupos étnicos específicos, como o povo hazara, e quem trabalhava nas forças de segurança no país ou em outros setores visados, como a diplomacia ou as universidades. Diante disso, o Brasil concedeu vistos humanitários aos afegãos e autorizou pouco mais de 6 mil deles até o momento. O País enfrenta agora os desafios de dar um encaminhamento digno a todos.
“Não temos medo do amanhã. Nós gostamos de trabalhar, e desejamos continuar nossa vida em um lugar pacífico como o Brasil”, afirma o professor de inglês Amir Ishinzada, de 32 anos. Assim como Shabir, ele foi acolhido pela Vila Minha Pátria, abrigo da Junta das Missões da Convenção Batista Brasileira que já recebeu mais de 400 afegãos.
DESASSISTIDOS. Conforme entidades que auxiliam no acolhimento dos imigrantes, alguns afegãos que vêm para o País têm para onde ir. Mas há outros que, sem destino certo, ficam desassistidos e esperam por abrigos. No último mês, segundo a prefeitura de Guarulhos, o Posto Avançado de Atendimento Humanizado ao Migrante, instalado no aeroporto para realizar o cadastro daqueles que precisam de ajuda, atendeu 399 afegãos. Ao longo de todo ano, o número total foi de 1.838, mais da metade dos que entraram no País.
Parte deles já foi encaminhada para vagas em centros de acolhimento da sociedade civil e de órgãos públicos, mas, como solução provisória, dezenas seguem acampados no maior aeroporto do País. Há alguns dias, dois afegãos testaram positivo para covid, o que elevou a preocupação sobre a situação que se arrasta pelo menos desde agosto.
Novos voos chegam a todo momento. O perfil predominante são famílias, muitas vezes com crianças pequenas, e homens solteiros. São normalmente representantes da classe média do Afeganistão, o que os possibilita comprar as passagens de avião e se dedicar aos trâmites para vir ao Brasil. Ao desembarcar, porém, muitos não têm dinheiro suficiente para alugar um espaço ou um lugar de confiança para ir. Também se veem limitados pela barreira linguística.
“Eu não me sentia segura mais no país desde que o Taleban chegou. Nós não sabemos quem é o alvo, o próximo alvo”, diz a conselheira psicossocial Shekiva, de 27 anos, que preferiu não revelar o sobrenome e a cidade em que morava. “Eles estão matando diferentes pessoas, de diferentes lugares, mas praticamente todo povo hazara está sob o alvo. Nós não nos sentíamos seguros, então saímos do país.”
Após 13 dias dormindo no aeroporto quando falou com a reportagem do Estadão, ela veio para o Brasil com os dois irmãos. Trabalhava com violência de gênero quando o Taleban assumiu o controle do Afeganistão. Na composição atual dos afegãos vivendo no aeroporto, poucos falam inglês, o que fez com Shekiva tenha se tornado uma tradutora informal. Ali, um homem se aproximou e, emocionado, pediu para ela relatar que tinha vindo para o Brasil após o assassinato do irmão, que era policial.
‘SEM COMIDA, ABRIGO OU REMÉDIOS’. “Quando a gente chegou ao aeroporto não havia ninguém nos esperando. Então nós ficamos uma semana no aeroporto, sem comida, abrigo ou remédios”, conta Shabir. Ele relembra que em julho havia uma estrutura ainda mais precária. Agora, tanto o poder público quanto voluntários que atuam no local conseguem dar assistência maior.
A prefeitura de Guarulhos oferece atualmente café da manhã, almoço e jantar. Voluntários, além disso, recebem doações da sociedade civil, dão assistência a quem chega e se revezam para dormir no local com os refugiados. “Conseguimos avançar em muitas frentes”, diz a voluntária Swany Zenobini, que coordena o coletivo Frente Afegã. O grupo começou a atuar na base do improviso em agosto e se articulou ao longo dos últimos meses. Entre as principais iniciativas, o Frente Afegã promove mutirões de saúde para prestar atendimento a quem está no aeroporto e leva os afegãos para tomar banho em um hotel parceiro – os banheiros comuns do aeroporto não possuem chuveiro. Busca ainda conversar sobre as possibilidades disponíveis para quem chega ao País.
Conforme o governo do Estado, o Grupo de Trabalho Acolhimento assegurou direitos à assistência social para 3,5 mil refugiados afegãos que desembarcaram em Guarulhos com vistos humanitários. As ações são em parceria com as prefeituras de Guarulhos e São Paulo, organizações sociais da sociedade civil e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur).
A Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado diz investir mais de R$ 4 milhões em 100 vagas de acolhimento dos afegãos. Já a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social da capital informa que encaminhou, em setembro, 93 afegãos que estavam em Cumbica a um centro de acolhida na zona leste, aberto exclusivamente para esse grupo.
O Ministério Público Federal fez reunião este mês, com o objetivo de buscar saídas de acolhimento e interiorização – autoridades discutem a ida dos refugiados também para outros Estados, como o Paraná. O Ministério das Relações Exteriores diz acompanhar a situação, mas acrescenta não ter competência para criar ou executar políticas de acolhida.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.