• Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 08/10/2023 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Há anos que a inspiração não me faz uma visitinha. Mas, sigo neste ofício pela trans-piração. Entre o lido e a lida, cato pedaços de cotidiano para ampliar as reflexões sobre o viver. Contudo, recebo uma boa ajuda das palavras: uma puxa outra. Creio que isso seja pela compulsividade da leitura que me coloca neste estado de pa-lavrador.  O exercício da crônica é nutrido pela ótica do senso crítico diante da realidade. E assim, a percepção tende a ocupar os espaços que seriam das inspirações.

    Carlos Drummond de Andrade já afirmara que “De notícias & não notícias faz-se a crônica”. Eu gosto da “não notícia”, dos fatos que surgem no “por acaso”. Contudo, para colher, no dia a dia, fatos que podem ser abordados em crônicas, é preciso enxergar a rotina de um povo na luta pela sobrevivência. Por isso que os cronistas andam pelas ruas sem armaduras, nem exigem dos leitores um traje a rigor. Da crônica, a Literatura não cobra nada rendado, nem enredado. Mas, nem por isso, trata-se de um texto sem densidade, sem identidade. Não a considero um gênero menor, mas um dos frutos da velocidade do tempo. Pode ser lida enquanto se espera um cafezinho. E, de um cafezinho, pode se escrever uma crônica, embora não seja escrita no tempo em que ele é feito. Se, de pedra, tira-se poesia; na crônica, uma lágrima pode furá-la, se o cronista perceber a consistência dela.

    O mestre Rubem Braga, em “Manifesto”, escreveu: “Há homens que são escritores e fazem livros que são verdadeiras casas, e ficam. Mas o cronista de jornal é como o cigano que toda noite arma sua tenda e pela manhã a desmancha, e vai.”

    A informalidade, a descontração, tanto no ato de ler como no escrever, plantam a espontaneidade sem exigir pedigree. E aqui posso usar a palavra “ninguendade”, bem empregada por Darcy Ribeiro no livro “O Povo Brasileiro”, uma vez que os “invisíveis” já começam a incomodar os calcanhares dos que defendem uma economia de exclusão.

    – É possível ir pro-fundo sem passar pela super-fície?

    A vida segue buscando as suas razões. O vivido pelo povo nem sempre é registrado nos livros de história. Ao longo dos anos, os passos dos “zés-ninguém” encontram-se na oralidade, no “boca a boca”. Gosto do acervo oral que alimenta o nosso folclore. Os causos superam os casos neste caos que vivemos. A liberdade de colocar um ponto no conto contado é um direito adquirido na cultura popular.

    Quando se pensa em criatividade, a realidade é que fica à beira da ficção. A criatividade vem atrelada ao desabituamento. É preciso ir além do senso comum. É um equívoco apresentar-se como criativo sendo apenas “mais um do mesmo”. Por isso, concordei com uma amiga educadora quando falou para seus alunos que não poderiam se contentar com as sobras, não poderiam ficar “enformados” na zona de conforto imersa na mediocridade.

    A inquietude produtiva busca o novo, mas tem consciência de que os alicerces são fincados na terra. A ninguendade tem voz coletiva. A nossa capacidade de adaptação e readaptação são movidas pelas inconstâncias do viver. Sempre teremos que superar adversidades. Isso nos une. A dor compartilhada cria laços de empatia e alteridade.

    No domingo passado, fui ao cinema com Marta. Fomos assistir ao filme “Som da Liberdade”, dirigido por Alejandro Monteverde. Ao final da sessão, uma jovem, que estava sentada na fila da frente, puxou o fio de uma conversa, expondo a opinião dela sobre o que viu. Claro que dei linha na prosa, depois nos despedimos. Já voltando para casa, a Marta perguntou:

    – Você conhecia essa moça?

    – Não, conheci hoje…

    – Mas ela parecia íntima, parecia que já nos conhecia há bastante tempo. Eu acho que nunca a vi. Pensei que ela fosse uma ex-aluna sua…

    – Se foi minha aluna, não lembro. Só sei que ela é mais uma voz contra a pedofilia…

    Quando estamos no mesmo barco, com o mesmo sentimento de indignação, é fácil identificar o sentido pelo qual devemos conduzir os nossos remos. Ostras feridas é que produzem pérolas. Mas as dores delas não podem ficar no ostracismo. A crônica tem essa virtude de expor a dor de um povo no calor dos acontecimentos. Fato este que exige bom senso nas ponderações, uma vez que não podemos cair nas precipitações passionais.

    Na sexta-feira (29/09), encontrei com um amigo, professor de Língua Portuguesa. Foi uma alegria revê-lo:

    – Na quarta-feira, falei de você! Usei uma crônica sua em sala de aula. Aquela, “Papo de padaria”…

    Essa satisfação é que justifica o risco de correr sobre o fio desta navalha por ficar do lado da ninguendade.

    Últimas