
Niède Guidon
A tristeza tem a mania de chegar assim sem aviso prévio. Chega, fica por tempo indeterminado e não se incomoda de ser indesejada. Toma assento e demora para se despedir…
O 04 de junho tornou-se um dia triste para mim, pois foi nele que meu saudoso pai partiu para a dimensão celestial em 1983. E, nesse 04 de junho que passou, mais uma tristeza se assentou no meu peito com a partida de Niède Guidon.
Sou um piauiense de fio a pavio, com as minhas águas salgadas misturadas com as águas doces do Parnaíba, com a minha meninice alimentada com peixes pescados no rio Poti. Sinto o pulsar do viver regado pelo cheiro da terra, pelo luar do sertão, pelo calado da natureza em obediência ao Criador.
Quando faço exame de sangue, fico com a impressão de que vou receber o resultado com a seguinte observação: “alto teor de cajuína”. Entre todas as árvores frutíferas, tenho mais apego aos cajueiros, porque me trazem saudade da infância…
A morte fere. Abre feridas desesperançadas de cicatrização. E as dores que mais nos afetam são aquelas que latejam onde o coração mais vibra: na raiz da vida…
Sou da Vila Operária de Teresina-Piauí. Não estou lá, mas o Piauí está bem aqui no peito. Desembirar saudade deixa o tempo escorregar em pedra furada por pingo de lágrima. Há latência conservada no silêncio sob o manto do tempo, quieta, porém não adormecida.
Quem ama o Piauí sentiu o peito doído com a notícia do falecimento de Niède Guidon. A minha gratidão pelo trabalho dela vai além das fronteiras do Estado. Se hoje o Parque Nacional Serra da Capivara está inscrito na lista do Patrimônio Cultural da Humanidade com reconhecimento da Unesco, deve-se muito às lutas que ela travou para preservar as pinturas rupestres que se encontram no Município de São Raimundo Nonato, que fica na região sudeste do Piauí, localidade marcada pelo que se convencionou chamar de Polígono das Secas, em que o sertão semiárido se torna mais severino, onde a caatinga se funde com o cerrado.
Há registros que comprovam a existência de seres humanos há mais de 50.000 anos em solo americano. O Parque é considerado um museu histórico a céu aberto. São mais de 1.200 sítios arqueológicos que guardam a maior concentração de pinturas rupestres já encontradas em neste planeta.
Criar uma consciência de preservação foi uma tarefa árdua. Por várias vezes, ela foi ameaçada. Colocou a vida em risco, porque sabia da importância da preservação da memória da nossa ancestralidade pré-histórica. A ignorância aliada à violência não respeita a vida, nem as tradições culturais.
Pelas pinturas rupestres, é possível comprovar que o homem, desde os primórdios, tem sede de arte. Está no DNA da humanidade a habilidade para criar e traduzir o viver. E também não se pode negar a aptidão para a religiosidade. O que se preserva no Parque são registros arqueológicos referente à cultura material e espiritual da pré-história humana com a assinatura: Niède Guidon.
Ela nasceu em 12 de março de 1933, em Jaú, Município do Estado de São Paulo. Formou-se em História Natural, que reunia Biologia e Geologia, na USP em 1958. Em 1961, foi para a França, onde estudou Arqueologia na Sorbonne. Obteve o doutorado em Pré-História em Paris. Lecionou na École des Hautes Etudes em Sciences Soliciales. Como professora, aposentou-se foi na França. Mudou de Paris para São Raimundo Nonato. Trocou as Luzes de Paris pelo luar do sertão.
Nesse citado município piauiense, foi enterrada no jardim de sua casa, após 92 anos de existência. Jamais será esquecida. A sua luta foi na Serra da Capivara, que guarda a sua história e sua alma. Quem visita o Museu do Homem Americano, fundado por ela, depara-se com o esforço de uma mulher que se entregou à humanidade. Em uma entrevista dada à Revista Nossa História, ela disse:
“Esse parque é uma coisa maravilhosa. Quando estou muito deprimida, eu vou para lá e pronto, passa. Naturalmente, eu tinha outra vida em Paris. Toda noite eu ia ao teatro, ao cinema, à opera, aos concertos. Aqui, não vejo nada disso. Mas tem esse parque, pelo qual eu luto até o fim. Se eu perder, perdi. Mas, eu acho que estou cumprindo o meu dever de brasileira.”