Neurociência ganha espaço no futebol com treinamentos para melhorar a atenção
Além de médico, preparador físico, podólogo e nutricionista, as comissões técnicas dos times profissionais de futebol passaram a ter nos últimos anos mais um profissional envolvido. A adoção de técnicas para estimulação cerebral tem aproximado a neurociência do esporte e levado especialistas da área a atuarem mais de perto na rotina dos times. O objetivo do trabalho é melhorar o nível de concentração, a rapidez na tomada de decisão e a ajudar os atletas a se recuperarem do estresse provocado pelos jogos e pelas cobranças.
A aproximação da neurociência com o futebol teve início há cerca de dez anos. Na Europa, vários times já contam com os serviços de profissionais da área. No Brasil, a função ainda está nos passos iniciais, ao contrário da Argentina, por exemplo. No país vizinho, neurocientistas atuam quase como um braço direito dos treinadores. No River Plate, o técnico Marcelo Gallardo pediu para ter na comissão técnica, ainda em 2014, a médica Sandra Rossi, neurocientista formada nos Estados Unidos.
“O jogador tem de saber que a cada dia de treino ele vai trabalhar o físico e também o cérebro. Dentro do treino técnico e do trabalho tático, isso estará presente. É um trabalho integrado”, explicou Sandra. Para aproximar a neurociência do futebol não é preciso necessariamente equipamentos caros e complexos, de alto investimento. O desenvolvimento das capacidades cerebrais pode ser feito com técnicas simples.
O Corinthians usa vários desses fundamentos nos treinos para recuperar lesionados. Em um exercício, o atleta precisa se movimentar rapidamente por um tablado dando cada passo de acordo com a orientação da luz e do som emitidos por uma tela. A atividade permite praticar a atenção e a reação do músculo ao estímulo.
O Palmeiras já realizou trabalho semelhante voltado ao aprimoramento de reflexos. Os jogadores precisavam se posicionar diante um painel e reagir à qual lâmpada seria acesa. Com isso, praticavam a concentração e a visão periférica. A atividade é realizada, principalmente, pelos goleiros.
A aplicação pode ser feita no futebol inclusive em atividades com bola. Em treinos de campo reduzido, a cada palma, grito ou sinal visual do comandante, a atividade passa a ter uma nova regra, como a restrição ao número de toques na bola, mudança de direção ou a substituição de alguns atletas no exercício. O técnico Tite costuma comandar esse tipo de treinamento na seleção brasileira, por exemplo.
As regras são estabelecidas anteriormente. Assim, além de trabalhar a parte técnica, o jogador passa a ter um estímulo para se concentrar mais no que está fazendo. Outro trabalho é fazer o atleta ficar parado diante de uma pessoa que segura em cada mão uma bola de tênis. Para praticar os reflexos, é preciso ficar atento para ver qual das mãos soltará a bola e então reagir para não deixá-la chegar ao chão.
O desafio dos neurocientistas é até mesmo observar particularidades de cada jogador e desenvolver um trabalho específico para quem precisa melhorar o tempo de reação, a visão periférica ou a falta de atenção durante uma partida de futebol. “As técnicas são muito variadas, porque temos objetivos coletivos e individuais. Quando se trata de um atleta em recuperação de lesão, fazemos um trabalho especial para melhorar sua reabilitação”, explicou ao Estadão a neurocientista Andrea Ricagno, do Racing, da Argentina.
O pesquisador Caio Margarido Moreira, doutor em comportamento e cognição pela Universidade de Göttingen, na Alemanha, é um dos principais estudiosos brasileiros da aplicação da neurociência no futebol. Em 2017, ele realizou um trabalho com as categorias de base do Palmeiras, em que os garotos utilizavam um óculos de realidade virtual para avaliar atributos como tempo de reação, tomada de decisões, visão periférica, impulsividade e atenção.
Pela estimativa do seu trabalho, em uma partida de futebol o jogador precisa tomar cerca de 6 mil decisões em 90 minutos. Isso inclui o momento de dar um passe, a forma como vai chutar a bola, qual adversário marcar, onde melhor se posicionar, entre outras escolhas no gramado. Uma pessoa que não é atleta toma no máximo 3 mil decisões ao longo de 24 horas.
“O neurocientista pode ajudar a desenvolver uma capacidade decisiva no jogador de futebol e aumentar o repertório dele. Ao longo dos anos, o atleta repete bastante os movimentos, mas é importante que ele adquira flexibilidade cognitiva e esteja preparado para agir de acordo com a situação de jogo, que é sempre imprevisível”, explicou o especialista.
NEUROMODULAÇÃO – Um artigo científico recente coordenado pelo professor da USP (Universidade de São Paulo) Alexandre Moreira, da Escola de Educação Física e Esporte, se debruçou sobre outro benefício da neurociência ao futebol. No trabalho, os pesquisadores fizeram um experimento com jogadores das categorias base do Red Bull. Os atletas passaram por sessões de 20 minutos de estimulação de correntes elétricas leves no cérebro no dia seguinte às partidas. O equipamento utilizado custa cerca de R$ 3,5 mil.
O objetivo foi avaliar o impacto disso na recuperação psicológica e no estresse gerado pelas partidas. Antes e depois da estimulação, os jogadores passaram por exames cardíacos e responderam a questionários sobre bem-estar. “Os atletas se sentiram melhor. Até a frequência cardíaca melhorou. Em conjunto, temos um indicador de percepção que o atleta se sente mais bem recuperado”, explicou Moreira.
Para o neurologista e neurofisiologista clínico Samir Magalhães, a estimulação elétrica no cérebro tem potencial de se tornar uma grande aliada no futebol, em especial na recuperação pós-jogo. “O funcionamento da parte física depende do grau de estimulação da mente de um atleta. Não à toa, há dias em que um jogador tem performance pior e isso se deve ao caráter emocional. Por isso, estimular a área do cérebro que envolve o controle de emoções pode trazer benefícios ao atleta dentro de campo”, afirmou.