Na Venezuela, próximo desafio da oposição é garantir ação de fiscais na eleição
A poucos dias das eleições de 28 de julho na Venezuela, a maioria das pesquisas de intenção de votos já dava ao opositor Edmundo González Urrutia uma vantagem de quase 30 pontos porcentuais à frente ao ditador Nicolás Maduro.
O desafio, porém, é transformar o apoio das ruas em voto nas urnas, especialmente em um contexto de desconfiança eleitoral. Para isso, entra em jogo uma figura-chave nessas eleições: as testemunhas eleitorais, responsáveis por defender os votos. São figuras equivalentes aos fiscais partidários de urna.
Depois das barreiras impostas para a escolha de candidatos e no registro de eleitores, o credenciamento de testemunhas tem sido a nova barreira da ditadura chavista nestas eleições. Nesta terça-feira, 23, a líder opositora María Corina Machado denunciou que a oposição não está conseguindo registrar suas testemunhas – uma dificuldade semelhante ao do registro de sua então substituta Corina Yoris.
Sem a presença de uma observação internacional ampla, a Plataforma Unitária – coalizão de oposição – estabeleceu a ambiciosa meta de encontrar 600 mil pessoas que servissem de testemunhas eleitorais e apoio técnico para garantir uma eleição sem fraude em todos os centros eleitorais. Do lado chavista, militares leais a Maduro estarão nas sessões de votação, por meio do “Plano República” de Nicolás Maduro.
Para estas eleições, haverá mais de 15,7 mil centros de votações disponíveis – equivalente aos colégios eleitorais no Brasil – com mais de 30 mil mesas – equivalente às seções eleitorais, em que há apenas uma urna por seção. Com isso, cada partido precisa ter ao menos uma testemunha e dois suplentes para cada seção, ou seja, no mínimo 90 mil pessoas, em uma eleição marcada por mudanças constantes de regras, desqualificação de eleitores e dificuldades logísticas.
Testemunhas e observadores
A figura da testemunha não deve ser confundida com a do observador eleitoral, que também vem enfrentando barreiras. “A testemunha é um ator interessado e está lá para defender os interesses de seu candidato”, explica Carlos Medina, diretor do Observatório Eleitoral Venezuelano, um grupo independente de observação.
Quando todos os candidatos contam com testemunhas, um serve de observador do outro, em um processo de autocontrole.
“Por outro lado, o observador desempenha uma função a partir da imparcialidade, geralmente com uma amostra estatística representativa da população, para levantar a previsão dos resultados, para registrar incidências, irregularidades, aspectos relevantes do desenvolvimento do processo eleitoral”, completa.
Segundo a cientista política venezuelana e professora no Valencia College da Flórida María Isabel Puerta Riera, o maior desafio da oposição é converter o forte apoio popular que tem hoje nas ruas em voto e, para isso, precisa gerar confiança nos eleitores de que seu voto será eficiente.
“Justamente porque há desconfiança em relação ao governo, e essa desconfiança se estende até mesmo às próprias Forças Armadas, que são vistas como cúmplices do regime, os partidos de oposição precisam ter pessoas nas mesas de votação”, explica.
“E não apenas para ficar de olho no que está acontecendo, mas também no caso de haver algum desrespeito à vontade popular, que foi justamente o que aconteceu na eleição de 2013, deficiências em termos de participação de testemunhas eleitorais em determinadas seções eleitorais”, completa.
Meta 600 mil
O número por si só já é um desafio, especialmente em regiões mais afastadas da Venezuela, onde há maior risco de irregularidades. Enquanto o chavismo conta com um mecanismo de anos de erosão do processo eleitoral, a oposição dependerá totalmente de voluntários.
O plano “Red 600K” foi lançado por Corina Machado já no primeiro dia de janeiro, quando ela ainda esperava ser a candidata. “Peço-lhe que estabeleça o seu próprio comando de campanha pela Venezuela, em cada casa, em cada escritório, em cada escola, em cada igreja, em cada armazém, em cada empresa, em cada espaço onde você e seus as pessoas se reúnem”, disse em sua mensagem de ano novo.
Até então, a PU esperava contar com ao menos 40 mil nomes com base nas eleições primárias de 2023, e esperava somar mais 20 mil. O cálculo foi feito antes do CNE definir o número de mesas, que se esperava ser muito menor dada a queda de eleitores – que se foram do país ou que jovens que não conseguiram se registrar. O número, porém, foi maior que o esperado, quase semelhante ao da eleição de 2018, exigindo mais testemunhas.
E nem só de testemunhas se fará o dia da eleição. É necessário construir o que os analistas chamam de “músculo eleitoral”: capacidade técnica de treinar estas 90 mil pessoas, logística para distribuí-las ao longo do território, atender suas necessidades básicas como alimentação e até substituí-las em caso de problemas. Com isso, a oposição endureceu a corrida pelos 600 mil.
Em busca de recrutar os 600 mil voluntários, a oposição criou os chamados “Comanditos por Venezuela” que servem como organizações de base para apoiar Edmundo González Urrutia.
“São uma força que se implementa e que se cria de baixo para cima; da organização popular, a mais real que existe neste país”, afirmou Carlos Fernández, coordenador nacional de juventude do Vente Venezuela, partido de María Corina, ao jornal venezuelano El Nacional.
Até junho, a oposição informava aos veículos venezuelanos ter em torno de 33 mil comanditos com mais de 270 mil voluntários. Nesta última semana de corrida eleitoral, autoridades da PU dizem ter alcançado os 600 mil.
Mudança nas regras
No entanto, a um mês das eleições, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) impôs uma nova regra que dificultou ainda mais a obtenção de testemunhas. Pelas regras originais, as condições para uma pessoa ser testemunha de um candidato são: ser um eleitor registrado, saber ler e escrever e não ser um funcionário do CNE. Mas desde o dia 20 de junho há uma quarta condição: a testemunha precisa votar no mesmo lugar onde vai atuar.
“Torna-se muito mais difícil conseguir pessoas que possam cumprir com o requisito”, lamenta Medina. “Isso vai afetar muito o plano que os diferentes candidatos tinham para a defesa do voto. E afeta principalmente os candidatos menores. Para candidaturas com pouca força eleitoral, vai custar muito conseguir testemunhas. E em muitas das mesas, talvez eles não consigam ter um representante”.
Outro problema com a mudança é o prazo. Os partidos têm até o dia anterior às eleições para definir suas testemunhas, mas elas precisam ser credenciadas pelo CNE, o que exige tempo. “O CNE demora para efetivamente credenciar a testemunha indicada”, afirma Medina.
Como tem ocorrido com todo este processo eleitoral, cuja data de 28 de julho foi definida apenas em março, os prazos para a realização de burocracias têm sido muito curtos. Entre eles: a postulação de candidaturas, o registro de eleitores, o credenciamento de imprensa e a realização de campanha – que só começou oficialmente em 4 de julho.
Na terça, María Corina Machado denunciou que a oposição não estava conseguindo registrar suas testemunhas, que devem começar seus trabalhos na sexta-feira, 26. “Hoje, o sistema do Conselho Nacional Eleitoral não está permitindo o credenciamento em massa, nem mesmo o credenciamento individual em nível local”. Na quarta à tarde, o candidato Edmundo González Urrutia atualizou que as testemunhas haviam finalmente sido credeciadas.
Outro medo do diretor do Observatório Eleitoral Venezuelano é que haja novamente um novo requisito que limite ainda mais a atuação das testemunhas. Em 2021, lembra Medina, o CNE já havia imposto a condição de que uma testemunha tinha de atuar no seu município de votação. A regra também não é prevista pela lei eleitoral.
“Um município possui muitos centros de votação. Aí já houve uma limitação, mas o critério era muito mais frouxo. Agora o levaram para o nível de centro de votação”, afirma com preocupação.
Observação internacional limitada
A necessidade de um grande músculo de testemunhas se torna ainda mais urgente diante da bem conhecida barreira que a ditadura chavista tem colocado para as observações internacionais. Em maio, o regime de Nicolás Maduro desconvidou a União Europeia para atuar como observadora após a ratificação de sanções contra 50 funcionários do regime.
Desde 2006, a Organização dos Estados Americanos (OEA) não tem permissão para atuar na Venezuela. Brasil e Colômbia não enviarão observadores. O maior nome presente no pleito será do Centro Carter, que já avisou que terá atuação limitada. Também haverá um pequeno painel da ONU, o Conselho de Peritos Eleitorais da América Latina (Ceela) e o Gabinete de Planejamento Estratégico para a Integração Regional (Opeir).
“São missões limitadas. Trazem um grupo de especialistas muito capacitados, muito bons, mas com uma equipe limitada. Creio que a equipe do Centro Carter será de 20 pessoas para observar a eleição. Eles vão tentar documentar, revisar, avaliar, ver, mas não vão poder ter um desdobramento de observação das eleições do dia eleitoral propriamente dito, porque há 30.000 seções eleitorais, há 15.000 centros de votação, e eles são 20”, afirma Medina.
A retirada do convite à União Europeia foi um duro golpe para a realização de eleições livres e justas, já que o órgão é o que teria mais dinheiro e pessoal para realizar uma observação ampla em todo o território venezuelano. “A União Europeia é uma das missões de observação eleitoral mais consolidadas, com maior tradição para fazer observação das eleições”, lamenta o observador.
“Pessoalmente essa é uma das minhas maiores preocupações”, confessa Puerta Riera. “Porque o que vimos na Guatemala foi que, de alguma forma, o que foi decisivo para que Arevallo tenha conseguido tomar posse do cargo, foi justamente a presença não apenas do Secretário-Geral da OEA, mas de outros líderes da região”.
“O monitoramento não é apenas para que os venezuelanos tenham confiança no resultado, é para legitimar o resultado. De acordo com as pesquisas, há uma certa possibilidade de que o chavismo perca essas eleições e o grave seria que, nesse cenário, não haver sinais suficientes de confiança na execução do processo. O que lança dúvidas não é o possível resultado, mais se as pessoas poderão votar livremente”, continua.
O bloco europeu participou da observação das eleições regionais de 2021, depois de 15 anos sem ter assistido às eleições venezuelanas. Daquele pleito, saiu um relatório com 23 recomendações sendo sete prioritárias. Nenhuma foi implementada. O relatório, altamente negativo para a ditadura, foi impedido de ser apresentado em Caracas.
María Corina Machado classificou a decisão do CNE de “um sinal muito negativo do que o regime pode estar tramando”, disse em uma sessão do Senado da Espanha, onde convidou os senadores a servirem como testemunhas.N