Musical mostra como Alcione consagrou o lado jazzístico do samba
Quando começou a rascunhar um espetáculo biográfico inspirado na vida e carreira da cantora Alcione, o ator, diretor e dramaturgo Miguel Falabella foi tomado por algumas questões: com quantas histórias se faz a vida de uma artista com 50 anos de carreira? Apenas uma atriz poderia contá-las ou seria preciso convocar uma entidade ou mesmo várias delas? A resposta veio definitiva depois que ele visitou o Maranhão, terra natal da artista: “Alcione é múltipla, portanto, todas as atrizes serão Alcione”.
É o que o público poderá constatar com a estreia, nesta sexta, 26, de Marrom, o Musical, no Teatro Sérgio Cardoso. Em cena, estão 23 artistas, mas 12 deles são atrizes que vão revezar-se no papel da intérprete de Não Deixe o Samba Morrer e Sufoco. O auge é a cena em que todas estão no palco, trajando um vistoso vestido amarelo e se revezando na apresentação de várias canções. “Muitas vezes, basta uma bater na mão da outra para que se consume a transferência da liderança em cena”, conta Falabella.
Apesar de amigo antigo de Alcione, conhecedor de suas histórias pessoais e profissionais, ele conta que só vislumbrou a organização do espetáculo quando visitou o Maranhão. “Lá, conheci histórias e lendas maravilhosas, o que acabou me convencendo a contar a história de Alcione por meio da lenda do boi.”
Assim, momentos biográficos da cantora são entremeados com a história de um casal de escravizados, Pai Francisco e Mãe Catirina, que está grávida e desejosa por língua de boi. Seu marido, assim, mata o boi mais bonito de seu senhor. Quando o dono da fazenda nota a morte do animal, convoca curandeiros e pajés para ressuscitá-lo. Com isso, o boi volta à vida, o que é festejado pela comunidade com uma grande festa. “Quem faz a costura entre as duas histórias é o Cazumbá, um ser mágico que tem a função de iniciar a brincadeira”, explica o produtor Jô Santana que, com o espetáculo, fecha sua trilogia do samba, iniciada com os musicais em homenagem a Cartola e Dona Ivone Lara.
JAZZ. Falabella escreveu um roteiro sofisticado na sua concepção, mas simples na execução. Afinal, aos 74 anos, Alcione é uma das mais importantes intérpretes da atual música brasileira. “Ela exibe uma rara versatilidade vocal, formada no jazz que conheceu ainda jovem, mas com fortes raízes também no samba, principalmente depois dos anos 1970”, comenta Falabella. “As 12 atrizes que a representam no musical têm vários timbres, que exemplificam a polivalência vocal de Alcione.”
De fato, são interpretações variadas, capitaneadas por duas das mais completas atrizes que atuam no musical brasileiro, Karin Hils e Leticia Soares. Ambas perceberam o grande desafio de personificar a Marrom. “É o trabalho mais instigante que assumi no teatro”, comenta Karin, que recentemente viveu a cantora Donna Summer em sua fase mais experiente. “Alcione representa a voz do Brasil e, mais importante, foi empoderada quando ainda não se usava essa palavra ao cantar sobre a mulher brasileira de uma forma menos machista e menos racista.”
DOMÍNIO
Segundo Karin, outra barreira enfrentada e vencida por Alcione foi ter conquistado o domínio da própria carreira. “Se isso já era difícil, nos anos 1960 e 1970, para uma mulher, e mais complicado ainda para uma negra.” Para a atriz, o musical tem a vantagem adicional de apresentar a sonoridade maranhense, ainda pouco conhecida em outras regiões do País e de grande influência na construção vocal da cantora.
Por causa disso, Leticia Soares não vê motivo para as atrizes copiarem o estilo marcante de Alcione. “Seria caricato”, define ela, que buscou apenas alguns detalhes. “Ela é dramática em suas apresentações, com um particular mexer dos braços. Também emite vibratos muito jazzísticos, mas com um colorido muito tropical. Veja quando toca trompete: quando troca o som do instrumento pela própria voz, não se percebe muita diferença, um é a continuação natural do outro.”
E, de sua pesquisa, Miguel Falabella trouxe também outras características locais – como os quase 300 figurinos que foram bordados em São Luís, por mulheres da Cooperativa Cuxá, que vivem em situação carcerária. “Convidei também quatro atores maranhenses para participar do musical, que trouxeram o sotaque de matraca, instrumento de difícil execução.”
Marrom, o Musical
Teatro Sérgio Cardoso.
Rua Rui Barbosa, 153.
2ª e 6ª, 20h30. Sáb., 16h e 20h30. Dom., 17h. R$ 40 / R$ 200.
Até 7/11.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.