Minha Pátria é a Terra: a promissora utopia
Hoje vivemos tempos distópiticos, carentes de inspirações utópicas. As grandes utopias do passado não cumpriram suas promessas: do iluminismo, dar instrução a todo mundo; do capitalismo, todos podem se tornar ricos; do socialismo, igualdade entre todos; do comunismo, uma sociedade sem classes; da pós-modernidade, não há narrativas universais, cada um escolhe a sua. O fato é que nenhuma sociedade, isso os antropólogos e sociólogos nos garantem, vive sem ter uma utopia, quer dizer, uma ideia forte, um sonho inspirador que dê sentido à vida das pessoas, à sociedade e à história.
Bem dizia o escritor irlandês, Oscar Wilde: ”Um mapa do mundo que não inclua a utopia não é digno de ser espiado, pois ignora o único território em que a humanidade sempre atraca, partindo em seguida, para uma terra ainda melhor”.
Mas o sonho utópico nunca morre, pois é da essência do ser humano, o princípio esperança (Ernst Bloch) de estar sempre a caminho. É completo, mas imperfeito, pois busca sempre melhorar sua humanidade. Tem muito de verdade a utopia de Pierre Teilhard de Chardin, ainda em 1930, a irrupção lá na frente, da noosfera na qual coração e mente da humanidade chegariam a uma feliz convergência. Também a utopia que circula nas bases: ”a alma não tem fronteira, nenhuma vida é estrangeira”. Ou aquela que até a TV fez circular: ”minha pátria é a Terra”, utopia verdadeira.
Três utopias viáveis foram propostas, a da Carta da Terra (2000) com sua ética do cuidado para com todos os seres e a do Papa Francisco com sua ecologia integral, “Como cuidar da Casa Comum” (2015) na qual afirma a relação de todos com todos, ”com o sol e a lua, com o cedro e pardal” (n.86) e da “fraternidade universal” entre os humanos e com todos os seres da natureza (Fratelli tutti 2015) porquanto todos foram gerados pela Mãe Terra e possuem o mesmo código genético de base. A terceira é o ecossocialismo que reassume o sonho originário do socialismo, longe do socialismo burocático soviético e incorpora o momento ecológico. Essa utopia é viável ainda em nosso tempo.
Quero apresentar a utopia radical de Robert Müller, por 40 anos alto funcionário da ONU, e primeiro reitor Universidade da Paz, em Costa Rica. Ela nos remete à utopia bíblica do “novo céu e da nova Terra”. Projetou um Novo Gênesis (cf. O nascimento de uma civilização global, Aquarius, São Paulo 1993 p,170-171):
“E Deus viu que todas as nações da Terra, negras e brancas, pobres e ricas, do Norte e do Sul, do Oriente e do Ocidente, de todos os credos, enviavam seus emissários a um grande edifício de cristal às margens do rio do Sol Nascente, na ilha de Manhattan, para juntos estudarem, juntos pensarem e juntos cuidarem do mundo e de todos os seus povos. E Deus disse: “Isso é bom”. E esse foi o primeiro dia da Nova Era da Terra.
E Deus viu que os soldados da paz separavam os combatentes de nações em guerra, que as diferenças eram resolvidas pela negociação e pela razão e não pelas armas, e que os líderes das nações encontravam-se, trocavam ideias e uniam seus corações, suas mentes, suas almas e suas forças para o benefício de toda a humanidade. E Deus disse: “Isso é bom”. E esse foi o segundo dia do Planeta da Paz.
E Deus viu que os seres humanos amavam a totalidade da Criação, as estrelas e o sol, o dia e a noite, o ar e os oceanos, a terra e as águas, os peixes e as aves, as flores e as plantas e todos os seus irmãos e irmãs humanos. E Deus disse: “Isso é bom”. E esse foi o terceiro dia do Planeta da Felicidade.
E Deus viu que os seres humanos eliminavam a fome, a doença, a ignorância e o sofrimento em todo o globo, proporcionando a cada pessoa humana uma vida decente, consciente e feliz, reduzindo a avidez, a força e a riqueza de uns poucos. E Deus disse: “Isto é bom”. E esse foi o quarto dia do Planeta da Justiça.
E Deus viu que os seres humanos viviam em harmonia com seu planeta e em paz com os outros, gerenciando seus recursos com sabedoria, evitando o desperdício, refreando os excessos, substituindo o ódio pelo amor, a avidez pelo contentamento, a arrogância pela humildade, a divisão pela cooperação e a suspeita pela compreensão. E Deus disse: “Isso é bom”. E esse foi o quinto dia do Planeta de Ouro.
E Deus viu que as nações destruíam suas armas, suas bombas, seus mísseis, seus navios e aviões de guerra, desativando suas bases e desmobilizando seus exércitos, mantendo apenas policiais da paz para proteger os bons dos maus e os normais dos insanos. E Deus disse: “Isso é bom”. E esse foi o sexto dia do Planeta da Razão.
E Deus viu que os seres humanos restauravam Deus e a pessoa humana como o Alfa e o Ômega, reduzindo instituições, crenças, políticas, governos e todas as entidades humanas a simples servidores de Deus e dos povos. E Deus os viu adotar como lei suprema: “Amarás ao Deus do Universo com todo o teu coração, com toda tua alma, com toda a tua mente e com todas as tuas forças. Amarás teu belo e miraculoso planeta e o tratarás com infinito cuidado. Amarás teus irmãos e irmãs humanos como amas a ti mesmo. Não há mandamentos maiores que estes. E Deus disse: “Isso é bom”. E esse foi o sétimo dia do Planeta de Deus“.
Se na porta do inferno da Divina Comédia de Dante Alighieri estava escrito: “Abandonai toda a esperança, vós que entrais” na porta do Novo Gênesis do mundo planetizado estará escrito em todas as linguas da Terra: “Não abandoneis jamais a esperança, vós que entrais”
Não estou seguro de que este sonho de Robart Muller seja, por ora, viável com o tipo de seres humanos que nos tornamos. Mas reinventando o ser humano – esse é o nosso desafio caso queiramos sobreviver – este sonho poderá tornar-se realidade.
Pois, nunca nos cansamos de sonhar de que, um dia, poderemos vivenciar essa promisssora utopia viável: A minha pátria é a Terra.
**Sobre o autor: Leonardo Boff escreveu “O doloroso parto da Mãe Terra“, Vozes, 2021.