• Mineira Paula Oliver lança um belo EP de sambas de roda

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  • 11/04/2021 07:20
    Por Julio Maria / Estadão

    As providências divinas se manifestaram dentro da missa, no instante em que Paula Oliver deixava o posto de cantora sacra e descia alguns degraus para receber do padre a hóstia durante o ritual da comunhão. Ela não tem dúvida de que foi ali o instante em que Deus escreveu certo por passos tortos, fazendo com que uma passada mal colocada a fizesse despencar e romper os ossos do pé em nove lugares. “O que caiu sobre ele?”, quis saber o médico. Nada, disse Paula. Nada além de todo o peso que ela carregava além do que deveria. Deus, acredita, a mandou para casa por nove meses para refletir sobre toda a mudança que estava prestes a fazer.

    Advogada assistente de juíza em Pouso Alegre, Minas Gerais, mãe de quatro meninas, até então casada, Paula decidiu fazer o que lhe mandavam desde a faculdade, no dia em que os amigos a viram cantar uma canção conhecida na voz de Marisa Monte. “Você está na profissão errada”, foi o que mais ouviu. A decisão de se tornar cantora começou a deixar de ser uma escolha depois que a chefe juíza extinguiu seu cargo durante o tempo de licença médica para se recuperar do tombo. Mesmo sabendo que faria a troca da vida estável e de um bom salário pela abnegada luta por aqueles mágicos minutos de palco que nunca ofereciam nada além da sensação de estar viva, Paula foi pra cima.

    Como aluna do Conservatório Estadual de Música Juscelino Kubitschek de Oliveira, prestou uma comovente prova de canto interpretando O Bêbado e a Equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc, e Gago Apaixonado, de Noel Rosa, ainda em uma cadeira de rodas. O rapaz que a acompanhou ao violão a chamou para fazer mais shows e, então, como ela diz, “a ficha caiu”. Músicas foram enviadas para editais, festivais da canção a selecionaram, um programa da TV Record a teve como uma das concorrentes e, um dia, ela assistiu ao show de Ney Matogrosso, Batuque. “Ali, fiquei apaixonada e resolvi montar um grupo de samba para fazer aquele repertório com mais alguns sambas antigos de Synval Silva e Almirante. Foi tudo acontecendo ao mesmo tempo.” Tudo mesmo. Ivan Meyer, maestro da Meyer Big Band, viu em Paula uma cantora de jazz e também a chamou para trabalhar com seu grupo.

    Paula Oliver entrou 2020 fazendo shows em sua própria casa, uma homenagem a Tom Jobim, até que duas tormentas a atropelaram: a pandemia e o fim do casamento. O desgaste que já havia se intensificou com a decisão de ser cantora. “Eu precisava me amar primeiro, e acabamos nos separando.” Separada, quatro filhas, sem o amparo do trabalho, era a música que tinha de virar. Mesmo em casa, ela começou a entrar em contato com os músicos com os quais passou a conhecer.

    Chegou aos sambistas do Rio depois de uma tentativa frustrada de falar com Diogo Nogueira e enviou para alguns deles uma primeira composição, muito autobiográfica, chamada Quero Voar. Cello Garcia e Aldecir Jardim devolveram o samba pronto dias depois. “Eu fiquei impressionada, foi tudo muito rápido.” E mandaram ainda outro, A Cantada, com arranjos de Milton Mori.

    Dudu Nobre foi sua nova tentativa. Paula ligou na coragem para o sambista revelado no grupo de Zeca Pagodinho e teve uma recepção amorosa. “Ele foi muito generoso e acabamos gravando juntos, com todos os instrumentos de cordas tocados pelo Mori. Foi incrível.” Eis o ponto de virada. A música de Paula Oliver, uma mulher nascida e crescida no interior de Minas, católica de berço, aparece em um EP com sambas que poderiam ter sido gravados por gente de Madureira ou do Estácio, berços do partido e do samba de roda do Rio. Sua intimidade com a linguagem é surpreendente por ser ela uma novata no meio e suas composições assinadas em parceria são, usando o termo da Lapa dos anos 50, de bambas.

    A Cantada, de Aldecir Jardim e Cello Garcia, tem os vocais divididos entre Dudu Nobre e Paula e marca a situação das rodas de sambas, muitas vezes machistas, em que um homem não aceita o não de uma mulher. Militante, mas com bom humor e uma instrumentação envolvente, feita por quem sabe, o samba tem personalidade: “Não adianta que eu não entro nessa / O meu negócio aqui é só cantar / eu agradeço todo seu carinho, mas Duduzinho eu vou só cantar”, canta Paula, depois do assédio narrado nos primeiros versos. Mais ágil, Quero Voar, de Aldecir, Cello e a própria Paula, fala de sua vida pré musical: “Você não me permite respirar / Estou passando mal, é um sufoco / Até meu celular quer confiscar / Precisa haver respeito um pelo outro.” E vem o coro ao final, com a frase e a melodia que perduram por dias em quem ouve: “Eu não quero gaiola, eu só quero voar / Nas asas de uma andorinha / acompanhada ou sozinha / Vou continuar.”

    O EP tem ainda Reza Forte, de Dudu Nobre e Xandy de Pilares, com arranjos de Rildo Hora, que mostra mais uma postura de segurança feminina diante das oscilações do pretendente. “Só reza forte pra ter meu amor / Vem devagar, sem papo de caô / Conte com a sorte pra ser vencedor / Só reza forte pra ter meu amor”. E Lembranças, do mesmo trio, Aldercir, Cello e Paula, é dolente, partideiro, saudoso de uma paixão. Aos 45 anos, a virada de Paula Oliver é inspiradora e seu samba reflete, na contramão de um mundo doente, a alegria de se estar vivo por mais um dia. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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