Memórias do menino eu
Não sei bem se é lembrança ou se é sonho. Sei que minha irmã flutuava no vento. Na tarde azul, ela branca, de saia xadrez, entre pássaros. É bonito. Porque essa minha irmã já partiu. Levou consigo a capacidade de levitar para melhor estar entre anjos.
Certa vez, menino, adormeci de dia e acordei de um sono de meses sem saber onde estava, que data era, e meus olhos pequenos enxergaram o sol pondo um ouro da tarde nos copos da cristaleira da minha avó. Vi que estava seguro, aconchegado, e ali comecei um poema que passo a vida escrevendo. Sobre o ouro velho das tardes mornas.
Num tempo em que a Glória era Morro, não Bairro, havia encostas encapadas de lavouras, cabras e galinhas nos quintais, e fogueiras à frente das casas, nos terreiros onde jogávamos bolinha de gude. Onde hoje há tráfico e receios, havia gente trocando espigas de milho por ramos de taioba. Onde hoje há funk, havia cirandas.
Certa vez eu estava num ônibus subindo o viaduto até a Ponte Rio-Niterói. Engarrafamos. Na pista de baixo, o trânsito também parou. No ônibus lá embaixo havia a menina. De maria-chiquinha e vestidinho de flor. Nos achamos nessa transversal do tempo. Eu acenei. Ela respondeu, mas logo botou uma língua travessa pra fora da boca, numa careta divertida e caiu na gargalhada. Respondi na mesma moeda, e caí na gargalhada. Trocamos olhares, nos demos sorrisos e quando os veículos voltaram a andar, no despedimos com sopros de beijos e acenos de adeus. Nunca mais nos vimos, jamais um saberá quem era o outro. Mas fizemos juntos uma doce memória. Como devia ser, quando seres humanos se conectam.
Um dia, numa fazenda, saí em dócil cavalo, cavaleiro hesitante. De repente, na estradinha de terra margeando a colina, veio o touro bufando, desabalado, músculos cobertos de pelo negro, pura fúria em tropel. Logo atrás vinham dois cavaleiros em poderosos corcéis. Freei o cavalo, e meu coração subiu à boca, os olhos arregalados, sem saber o que fazer. Congelei. Os peões que vinham à caça do touro, gritaram: “Sai, moleque! Sai logo!”, enquanto mexiam vigorosamente os braços para alertar do perigo. Tive o tempo exato de escapar para a lombada de terra na margem da estrada enquanto o furacão cavalgante me deixava envolvido numa nuvem de susto e poeira.
Li Reinações de Narizinho quando era muito pequeno e depois adormeci numa beira de riacho. Logo o Príncipe das Águas Claras pulou da corrente e ficou circulando em cima de mim, indagando pela noiva, e eu apenas podia dizer que a vira fugir para o barranco dos fundos da casa, onde triunfantes avencas se multiplicavam, densas como um casaco da terra.
Houve a tarde perfeita. De temperatura exata, brisa correta, sol bem aquarelado sobre um azul sem borrões. Sentado na laje duma casa de praia, eu começava a poderosa viagem de descobrimento de Pablo Neruda, ao som do mar e à luz do céu profundo. Os versos daquela antologia e aquela tarde nasceram um para o outro.
Desde cedo amei caligrafia, embora escreva em garranchos. Meu pai colecionava fascículos de história e neles vinham estampas de documentos com autógrafos. Pedro II, Princesa Isabel, Caxias, Santos Dumont. Um dia comecei a imitar de forma muito convincente a assinatura dos grandes vultos. Meu pai se impressionou e me veio com graves aconselhamentos, preocupado que eu iniciasse promissora carreira de falsário. Décadas depois, rimos muito disso.
Memórias do menino eu. Outro dia, vem mais.
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